Parece que o dia foi ontem...

Data 20/03/2013 15:35:41 | Tópico: Textos

Pode até já ter passado o dia que dizem ser o indicado para te lembrar. Mas... que importância tem isso, se te trago sempre comigo e todos os dias? De vez em quando ouço-te a chamar da porta da oficina para te ir amparar uma prancha mais grossa que não consegues serrar a direito sem a minha ajuda. Ou para segurar numa porta de um guarda-fatos enquanto fixas os parafusos ou lhe dás umas marteladas por dentro até as peças ficarem alinhadas. Ou simplesmente para te segurar na gambiarra enquanto fazes um risco preciso com o lápis que tiras da orelha.
Hoje foi dia de aplainar. O barulho da máquina arrancou-me da cama mais cedo. Estas aparas que te estorvam nos pés ficam para mais logo, da parte da tarde, que agora não tenho vagar. Depois venho cá, apanho-as todas e dou-te uma varridela no chão como deve ser.
Na prateleira, a velha telefonia (a mesma que nas tardes de domingo, te fazia companhia no relvado do Parque Eduardo VII, quando andavas por Lisboa) sempre na Rádio Renascença por causa das notícias e dos fados da Amália. De vez em quando lá vais buscar as cassetes que metes a tocar no pequeno aparelho de teclas brancas e uma vermelha na extremidade, onde o Alfredo Marceneiro e o Carlos do Carmo te cantam saudades de outros fados...
Daqui a nada chega o ti Américo com o caldeiro do leite das cabras na mão e ambos ficarão a conversar enquanto esperam pelo sr. Alberto carteiro, que haverá de aparecer por volta das três horas, como de costume, com a sacola das cartas à tiracolo e a assobiar uma moda. Deve trazer a "Comarca de Arganil" e um punhado de novidades disto e daquilo que aconteceu aqui e ali. Haverá ainda tempo para um copo de vinho na adega, dois dedos de conversa e umas quantas quadras a rimar daquelas que se costumam fazer de improviso, nomeando alcunhas e feitos de conhecidas figuras das redondezas. Hão-de dar umas boas gargalhadas antes de se despedirem com um alegre e já saudoso "até amanhã". Depois, ele abrirá a caixa do correio vermelha que está na parede da nossa casa e tirará do seu interior o monte de cartas que guardará na sua sacola castanha. Ajeita-a ao ombro e de novo o assobio a acompanhá-lo enquanto vai descendo a rua sem pressas. Daí a pouco o barulho da motorizada a dobrar a curva das aveias.
Vês? É assim que te vou lembrando todos os dias, à medida que me vão surgindo estes pensamentos de retalhos nossos e por nós vividos, algures num tempo ido e agora apenas por mim, revividos.





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