aqui não se gosta de poesia

Data 27/03/2013 06:29:42 | Tópico: Textos

aqui não se gosta de poesia. não se vive poesia, não são amados os poemas. fazemo-los por distração, por passatempo, por mera forma de terapia. exaltamo-la oca, papagaiana de nós próprios.

o que vive-se hoje é a poesia corriqueira, pedinchona, cheia de adjetivos, diminutivos, belas e burras palavras que, coitadas, sem culpa, são empregadas em poemas com assim qualquer falta de vícios, de sustos, de vida, de espanto.

poesia corriqueira, diga-se de passagem, difere e muito dos fléche-poemas, poemas-relâmpago, muito comuns na obra do leminski, de josé paulo paes ou das quadras populares de antónio aleixo, por exemplo.

poesia corriqueira, digo eu, é aquela que não nos move, não nos emociona, não nos leva a pensar ou a exclamar um palavrão, no meu caso. não demonstram exercício, desenvolvimento da musculatura poética.

essa veia não é alimentada apenas pelos poetas de sábado e domingo, não. vejo poetas que se dedicam a dedilhar, letra após letra, dez, vinte, trinta poemas, sem perderem aquele ar lãzudo, publicitário.

não vejo quem dê o sangue à poesia. aliás, vejo-os, cada vez mais assim calmos, assim tristes, assim magros; vejo-os largados nas esquinas do esquecimento, perdidos na embriaguez dos poetas de sangue latino.

aqui não se gosta de poesia. nossas barrigas estão cheias de letras de macarrão em rebuliço, fazendo poema concreto, com o perdão da palavra.

cadê aquele poeta que prefere escorregar nos becos lamacentos, redemoinhar aos ventos, como farrapos, arrastar os pés sangrentos, a ir por aí? cadê aquela poeta que põe seu sonho num navio, o navio em cima do mar e, depois, abre o mar com as mãos pro seu sonho naufragar? cadê aquela poeta que é reverso de sua própria placidez, escudo e crueldade a cada gesto; tão simultânea, madura, adolescente? e aquele outro, que mal rabisca, não dá pra mudar nada, já é um clássico?

esses poetas aí morreram. caberia a nós cavar nosso próprio buraco atrás dos cágados, nem que parássemos na china. caberia a nós criar, recriar, moldar, moer a cana da palavra, catar os feijões, debulhar a palavra, escarnecê-la, cuspi-la.

eu quero mesmo é tentar arrancar a palavra da pedra. tão funda palavra, tão funda, que se eu conseguir por acaso removê-la, serei coroado rei da inglaterra.

mas não. aqui não se gosta de poesia e nós somos todos uns castrados.



referências:

"poeta castrado, não", de ary dos santos

paulo leminski

josé paulo paes

antónio aleixo

"cântico negro", de josé régio

hilda hilst

cecília meireles

"a bela e a fera", de chico buarque e edu lobo





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