Entre as minhas duas vidas

Data 04/04/2013 14:34:57 | Tópico: Textos

Já dizia o grande poeta Álvaro de Campos no seu poema "Dactilografia", que todos temos duas vidas. A verdadeira e a falsa. A verdadeira, a que sonhamos quando crianças e a falsa, aquela que realmente vivemos em adultos, condicionada por todas as regras e complicações inerentes à convivência com os outros que nos rodeiam. Sendo que a segunda será a supostamente útil e correcta, ainda que nos possa privar de vir a realizar os sonhos da outra...
Nunca tive grandes sonhos na minha primeira vida, sempre me contentei com pouco visto que me ensinaram a estimar o pouco, porque seria o tudo que tinha. Pelo que, ao entrar na segunda nunca deixei de viver também na primeira. Até porque, dentro de mim vive ainda uma criança (desconfio que seja ela o meu sonho, mas nunca disse a ninguém com medo que alguém me o pudesse querer vir roubar) que costuma viajar comigo no tempo e no espaço sempre que a falsa vida nos aborrece. O processo é simples. Não nos apetece estar ali e sorrateiramente vamo-nos afastando cada vez mais e mais. Apenas deixamos o corpo, estático, a marcar presença (não queremos que os outros descubram que não estamos ali, que fomos para muito longe). Aos poucos, vamos deixando de ouvir o burburinho à nossa volta e em menos de nada atravessamos a fronteira para o lado de lá, onde nos somos realmente e felizes! Sem o peso do que os outros poderão pensar de nós se fizermos assim ou assado, frito ou cozido.


DACTILOGRAFIA

Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra ...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever.


Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa



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