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 [li pela manhã]Data 09/04/2013 20:55:41 | Tópico: Poemas
 
 |  | li pela manhã à hora do café
 que o poeta morreu
 mas de morte natural
 
 nada a assinalar
 nesse domínio
 
 morreu
 acabou-se
 bateu as botas
 
 enfim
 
 foi-se
 
 foice de uma ceifeira
 outra
 
 não a que ceifa
 nas planícies
 do alentejo de outrora
 
 que não essa
 lhe limpou o sebo
 
 há quem diga que o poeta
 era pior do que as moscas
 em redor das palavras
 
 queria todas
 sem excepção
 
 no entanto repete-se
 morreu
 de morte natural
 
 nada de indigestão
 por ingestão
 em demasia de palavras
 
 morreu
 e caso encerrado
 
 cerrado
 ficaria o baú
 se baú tivesse
 o poeta da notícia
 mas não
 
 não tinha baú
 para ficar cerrado
 sequer gaveta
 
 agora
 ele era todo computador
 
 assim
 
 cerrado
 ficaria o disco duro
 se não fossem os que logo
 pela manhã
 entraram casa adentro do poeta
 
 não com condolências
 mas com projectos
 
 cerrado
 ficaria o poeta
 bem aconchegado
 no regaço da morte
 se não fossem
 os estudiosos
 
 não da morte
 mas do poema após a morte
 do poeta
 
 porque em vida o que vale o poema
 nada
 só os holofotes
 da morte
 conferem estatuto
 ao poeta
 
 e como tal
 ao poema
 que o poeta
 um dia escreveu
 
 diz-se
 que o poeta trazia uma canção
 no bolso
 para fumar mais tarde
 
 porque as canções também se esfumam
 e pela boca
 após travar bem dentro dos pulmões
 
 trazia
 dizia
 porque se diz
 uma canção
 para fumar mais tarde
 
 tardou o dia
 e turvo ficou o sonho
 
 não do poeta para a fumar
 mas da própria canção
 que assim ficou no bolso
 esquecida
 sem ser fumo
 
 e uma canção no bolso
 é como quem diz
 
 um rebuçado
 uma pastilha elástica
 
 mas o poeta em questão
 o tal que morreu
 de morte natural
 era mais de cigarro
 cigarrilha
 charuto
 cachimbo
 
 era mais de fumar
 do que mastigar
 
 cacimba cai
 cai a cinza no bolso
 onde o poeta tinha uma canção
 que aguardava
 ser consumida
 e a cacimba que cai
 sob a forma de cinza
 cinge
 a canção como lágrima
 
 o poeta era um louco
 que trazia sempre música
 como suspensórios
 a suspender
 as calças da criação
 
 ele ainda julgava que criava
 queria criar
 mas só imitava o mundo
 
 dava-lhe uma outra matéria
 na transfusão
 que não era sangue
 sequer tinta de pintor
 ou pó de escultor
 mas palavra
 
 lavra o lavrador a terra
 para isto
 para escutar
 que o que morreu de morte natural
 imitava o mundo
 através da palavra
 
 e o poeta errava
 por entre palavras
 conspirando contra o mundo
 
 o poeta era
 sem dúvida
 um louco
 
 como aquele que trazia
 a aparelhagem às costas
 para dar música aos outros
 
 os que queriam
 e os que não queriam
 
 palavra de poeta é
 pois
 treta
 
 os outros
 os que não dizem ser poetas
 também a usam
 e de que lhes vale isso
 
 não são poetas
 pelo menos de título
 
 mas sempre se salvam
 da triste figura
 
 essa de mãos nos bolsos
 acariciando
 a canção que se traz
 no bolso ocasional
 
 uma canção
 recorda-se
 para fumar mais tarde
 
 que ainda não havia
 palavras
 para ligar o som
 
 mas como o poeta morreu
 finou-se
 também a canção
 
 e só de pensar
 que o desejo derradeiro
 do poeta
 
 o tal que morreu
 de morte natural
 
 seria nos seus últimos instantes
 coisa que não viveu
 somente furtar
 
 descaradamente
 
 uns versos
 do lois pereiro
 e chamá-los de seus
 
 cuspídeme enriba cando pasedes
 por diante do lugar no que eu repouse
 enviándome unha húmida mensaxe
 de vida e furia necesaria
 
 não houve tempo
 
 morreu
 
 
 
 Xavier Zarco
 
 
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