O chapéu de palha

Data 15/04/2013 11:12:09 | Tópico: Contos

Havia um guarda-vestidos na sala, grande, com um espelho onde cabiam ela e os seus sonhos miúdos. Bem, na verdade não era assim tão grande, a casa é que era pequena, e os quartos, só suficientes para caber uma cama, uma mesinha de cabeceira e a arca de latão, que escondia tesouros e cheirava a naftalina e flor-de-laranjeira, quando se abria - por isso o móvel grande acabara na sala.

Ela, por ser pequena, é que via tudo em ponto grande: a vida, a casa, o guarda-vestidos, o espelho. E os irmãos: a mana-grande –a sua princesa heroína, linda e prendada, e o mano-a-seguir, o robin hood fora da lei lá de casa, sempre a fazer-lhe das suas...

O guarda-vestidos, claro, não guardava só vestidos... guardava também o fato de domingo do pai, aquele com relógio-de-corrente de ouro, guardava as peças de tecido de onde a mãe cortava modinhas de festa, guardava o vestido de cintura descaída da mana, já atenta às modas, guardava os calções de merino e o casaco de tweed do robin-hood, guardava o seu vestido de cetim-pérola, guardava uma caixa grande, com o enxoval do mano-que-ia-nascer... enfim, guardava-tudo, das lãs de inverno às chitas de verão, da goma dos domingos às roupas de mão-em-mão...
Ah, e sobre ele, sentavam-se duas bonecas: a dela e a da mana-princesa. Claro, só para brincar de vez em quando, o resto do tempo, olhavam para ela com ar de desdém, lá do alto dos seus olhos de plástico e dos seus vestidos feitos a preceito, dos restinhos que sobravam das mãos de fada da mãe.

Sem bem saber porquê, ela sempre se sentira paninho de terceira, restinho de chita – não que não se sentisse amada e mimada, não!... os manos grandes até diziam, com uma certa razão, que ela era a “menina do pêro” lá de casa: menina do papá, sobretudo. E amor, não, nunca faltou, que ela sentisse, como o pão nosso de cada dia.
Mas nunca se sentia bonita como a mana-princesa, nem forte e aventureira como o mano-a-seguir. Era uma menina cor-de-rosa-pálido, sossegada (fora uma birrinha ou outra, claro, quase sempre reclamando o mimo que era seu por direito...), tímida, mesmo. E achava o espelho do guarda-vestidos da sala, um lugar onde queria ir, mas que temia, por ser tão grande, por ser tão fiel à verdade – e ria dela, juntamente com as bonecas, lá no alto. Ela juraria que, às vezes, chegava a ouvir os seus cochichos, dos três, as bonecas aperaltados e o espelho frio: “cresce e aparece, patinho feio”...

(Foi por essa altura que ela criou espelhos imaginários dentro dela – esses, faziam-na a mais bela das princesas, dentro deles, vivia as mais mirabolantes aventuras...)

*

Um dia, porém, foi à feira da cidade, com a madrinha. Era longe, mais de uma hora a pé, mas ela já era crescida... e depois, a madrinha gostava muito dela, a certeza de que iria ganhar uma prenda, lá lhe foi dando ânimo aos pezitos pequenos, para o ir (!) e o voltar (.....).

Foi um chapéu: um lindo chapéu de palha, enfeitado com um grande laço de seda vermelho e rebordo igual. Bom, não seria tão distinto assim, nem o laço seria seda, mas naquele tempo, as coisas tinham outro valor, já se sabe. E era novo! Novinho, a cheirar a erva-doce e a sol...

No caminho de volta, já lhe valeu, para proteger a sua pele de porcelana baratinha, do sol rico dessa tarde de verão. E... para encobrir pinceladas novas de rubor, quando o seu olhar de borboleta irrequieta se cruzava com o de certo menino de fato branco, também de regresso da feira da cidade: o Zé brasileiro, seu colega da 4ª classe, chamado assim por ter nascido no Brasil, donde tinha regressado com os pais, há pouco tempo atrás.

Não se sabe se foi do chapéu (que lhe ficava realmente bem), se da cor vermelha do vivo e do laço, se do sol que lhe tingiu as faces, se de ter visto o Zé brasileiro, no caminho de volta... o certo é que, naquela tarde, ela se achou linda, enfrentando o espelho grande do guarda-vestidos de sua casa... pela primeira vez, dentre as poucas que, ao longo da sua vida, ela se iria achar assim.

As bonecas, essas, calaram-se de inveja, e começaram, desde aí, a morrer de morte esquecida...



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