DESCONVERSANDO NUM CENTRO DE INTERNAÇÃO PARA MENORES INFRATORES

Data 02/05/2013 19:58:47 | Tópico: Textos -> Outros



Não que sinta saudades daquele lugar, pois mesmo que digam que são como hotéis cinco estrelas não vale à pena passar um dia sequer por lá. Mas como fiquei por certo tempo naquele Centro de Medidas Sócio-Educativas realizando atividades, não de ordem sócio-educativa, mas de caráter administrativo (mas terminando por fazer um pouco “o sócio educativo”), tirando as piores partes sempre me vem à cabeça alguns fatos que se destacam em fragmentos de conversas e acontecimentos.

I – ADOLESCENTE COM SÍNDROME DE NUDEZ:

Certo dia, quando estávamos em reunião, entrou na sala um dos monitores que naquele caso era do sexo feminino, nervoso e revoltado por conta do que tinha visto:

- “Olhem aqui, peço demissão agora, pois não vou mais trabalhar neste antro! Saibam que um dos bandidos do alojamento nº 04 teve a ousadia de ficar pelado na minha frente quando fui fazer a contagem. Foi um desrespeito e ainda ficou gargalhando na minha cara..."

Nunca entendi porque contratavam monitoras para trabalhar num centro de internação para adolescentes do sexo masculino, mas como aquelas autorizações vinham de um patamar muito alto, pouco se tinha a fazer. Na verdade o fato citado acima não foi algo engraçado, mas sorrio ao lembrar quando a história se repetiu comigo.
Estava eu na porta do alojamento nº 04 (chamávamos de alojamento porque a cartilha dos “Direitos da Criança e do Adolescente” não permite que se chame de cela, apesar de ter grade, cadeado e etc.), fazendo levantamento das necessidades daquele espaço. Então o ‘tal adolescente’ surgiu na minha frente como tinha vindo ao mundo. Continuei a fazer as anotações como se nada estivesse acontecendo e o fulano caminhando de um lado para outro mais desbotado que uma mandioca. Peguei todas as informações que precisava com os outros internos e já ia me dirigindo a outro alojamento quando o ‘dito cujo’ me chamou:
- Hei dona! Não falei ainda o que ‘tou precisando’
Com toda calma retornei e olhando nos olhos dele perguntei:
- E o que está precisando? – e ele respondeu:
- Por que não correu chorando assustada... não me viu pelado aqui?
- E ainda estou vendo- respondi - e aconselho-o a vestir roupa senão ainda vai pegar um resfriado.
E ele ainda todo garboso perguntou:
- Mas e então, não vai dizer nada?
E suavemente respondi:
- Filho, veja bem; sou casada ‘com um homem’ e tenho também quatro filhos homens que dei banho e passei talco quando ainda não sabiam fazer isso, sozinhos, portanto, sei como é um menino sem roupa.
E fui embora tranquilamente deixando ele lá com cara de tolo. Depois disso ele nunca mais quis desfilar sem as vestimentas.

II – ADOLESCENTE QUERENDO ME CORROMPER:

- Hei dona, vem cá, vem cá!
- Pois não?
- Tia, o negócio é o seguinte: ‘Tá’ a fim de ganhar uma grana extra?
- É claro! Ganhar grana extra todo mundo fica a fim.
- Então o negócio é o seguinte. Tô a fim de acertar as contas com um gaiato aí e preciso de duas facas. Te dou cem contos pra tu mandar ver pra mim.
- Vamos negociar direito isso menino! Se você me pagar cem mil eu trago as duas facas pra você.
- Tá doida dona! ‘Tá’ querendo queixar a parada é? Tu é muito da ambiciosa. Onde que essas faquinhas valem todo esse ouro?
- Valem sim! Já pensou se descobrirem que passei isso pra você? Vão me mandar embora do emprego. Quem vai sustentar meus filhos? Eles vão ter que parar de estudar pra se sustentarem ou então vão fazer coisas erradas e ainda irão dividir este alojamento contigo. Além do mais tem que sobrar dinheiro pra pagar o advogado pra me tirar da cadeia.
- É ‘mermo’ Dona. É caso critico ‘mermo’. O ‘advoga é caro pra ‘dedel’.

III – ADOLESCENTE PENSANDO QUE EU ERA DO GRUPO:

- Hei dona... Aqui tudo que é funcionário usa uniforme, por que tu não ‘usa’ também?
- Ah! É que sou meio rebelde...
- Pô dona, toca aqui (plaf, plaf) tu é ‘das nossa’.



IV – ADOLESCENTE PENSANDO NA VIDA:

_ Pô dona, to injuriado com isso aqui. Cansei. Tô pensando em fugir.
- Que é isso menino? Falta pouco pra saíres daqui. Tem paciência!
- Ah dona, a senhora sabe, não adianta eu sair daqui, pois eu vou voltar ou então vou pra cadeia. A ‘socialeza’ não vai querer me receber. Não tenho ninguém no mundo, to por conta.
- Olha, continua estudando e fazendo os cursos que te ofertarem, cumpre tua medida, sai de cabeça erguida e constrói outro nome lá fora.
- Acha mesmo que tenho chance? Tenho ainda alguma chance...? Sei lá. O mundo lá fora tem muito mata-cachorro. Tô perdido dona, o cara aqui já era... já era...
(Este jovem profetizou a sina. Foi liberado dois meses depois e foi assassinado no dia seguinte: um policial quando o viu pensou que ele havia fugido do Centro)




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