Memórias de Uma Insana X - Religião

Data 26/07/2013 15:00:15 | Tópico: Contos


Foto Betha Mendonça


Memórias de Uma Insana X - Religião
by Betha Mendonça

Numa das últimas sessões com os analistas na famigerada ala quatro da psiquiatria falou-se de crença, da necessidade ou não de se ter uma fé religiosa. Crer em si e se fazer crer. Confiar nas pessoas e ser de confiança. Questionamentos e assertivas, que para mim e a minha formação familiar ligada ao catolicismo, só aumentavam o tédio e as minhas certezas da inutilidade da dita psicoterapia.

Comportei-me como de costume: respostas prontas que ouvira sobre Deus, Santos, pecado, perdão e etc. Devo ter agradado a audiência, pois deixaram o quarto com ar de satisfação.

Tanto foi falado que passei a noite e madrugada alucinada. Imagens de anjos louros, faces rosadas e olhos azuis voavam com amplas e alvas asas. Incrível como até as visões são preconceituosas! Não lembro entre as hostes nem um ser celestial negro, de olhos escuros e cabelo pixaim. Enfim... De uma hora para outra o cenário com cheiros de perfumados incensos, fofas nuvens, anjos, músicas maravilhosas mudou para um odor forte de uréia. Parecia que a humanidade e quiçá a mortandade inteira havia urinado ali dentro. Transfigurado em monstros horrendos e animais asquerosos o céu virou uma sucursal do inferno, com lamentos e uivos desesperados. Todos eles me cercavam com olhos mais transtornados que os meus ao vê-los. Rodavam comigo ao centro num ritual macabro no qual eu seria a oferenda. O pavor me manteve em silêncio como quem assiste a um filme sem ter pipoca nem refrigerante nas mãos. Devo ter desmaiado aterrorizada e só dei que era dia quando me trouxeram o desjejum e a medicação.

Meu comportamento já não aparentava agressividade. Como falavam em transferência para a ala três, preferi nem tocar com o doutor sobre o ocorrido. Tive receio de permanecer naquele local. O doutor era um homem bom, mas são e nunca se sabe o que pode fazer uma pessoa sã!...



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