Memórias de Uma Insana XI – Ala Três

Data 09/08/2013 22:21:47 | Tópico: Contos


Foto Betha Mendonça


Memórias de Uma Insana XI – Ala Três
by Betha Mendonça

O esperado dia da minha transferência da ala quatro do sanatório para a ala três finalmente chegou. Não continha o contentamento de sair daquele quarto sem janela.Caminhei junto ao doutor e ao carcereiro, digo, enfermeiro responsável, pelos corredores frios e mal iluminados. Passamos por vários portões gradeados até chegar ao local da minha nova estadia. Ali ainda era um setor de isolamento, porém os cômodos eram “normais” sem a proteção dos acolchoados: cama hospitalar, mesas e acessórios.

Logo que fiquei a sós, com “olhos de lince” explorei o local. Primeiro corri à janela. Era vedada. Grossa grade separava o vidro da abertura. Eu vi o céu!Manhã clara, de poucas nuvens e eu olhando maravilhada a vida lá fora!...

Explorei o banheiro, os objetos de higiene... Havia batom!Há quanto eu não via um? Passei nos lábios. Deliciei-me com o sabor morango e cheiro que ele exalava. Na falta de espelho olhei pelo cromado da descarga e vi que ficara com aparência mais feminina, apesar do rosto maltratado. Meus cabelos cresciam desordenados depois de raspados para as suturas no meu couro cabeludo, da época que estourei a cabeça entre as paredes... Maior viagem aquele surto!

Voltei para janela. Meditei ao ver a correria das pessoas lá embaixo, os carros e tudo o mais: quem era mais louco e estava mais preso? Eu ou eles?Via as pessoas como peixes num aquário que a gente se encanta, mas não gostaria de viver no lugar deles. Sentia certo conforto de está no hospício e não ter responsabilidades, nada para cuidar... Apenas sentir os dias passando, comboio de horas mortas, em que eu estava desligada do mundo real, se é que havia um.

Naquele dia durante a terapia pedi que me deixassem ter um bloco de papel, caneta e lápis coloridos, uma vez que a diferença daquela para a ala anterior era a janela e a ausência dos acolchoados. Os terapeutas sabiam o quanto eu era dissimulada e que ainda oferecia “certo” perigo a mim e aos profissionais. Afirmaram que logo percebessem que eu tinha condições acatariam meu pedido.

Fiquei com ódio de terem me negado o desejo. A vontade que tive foi jogar uma das cadeiras e rachar o crânio da terapeuta ruiva a esquerda do doutor. Nunca fui com a cara dela! Tinha um ar sonso, de superioridade fingida em simpatia. Detestava os olhares e sorrisos complacentes que me lançava como quem pensava: - Pobre maluca!

Tratei de me controlar, apertando as mãos uma na outra até quase quebrar os dedos. Não podia voltar para a ala quatro agora que acabara de chegar a três... O doutor me deu os parabéns pela melhoras. Coitado, ele cria na minha cura!



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