Quando dei por mim #.#.#

Data 05/09/2013 02:42:46 | Tópico: Poemas

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Quando dei por mim


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Não escrevo mais poemas
Depois que percebi os motivos do mundo.

Um dia acordei e dei por mim
Assistindo a fome devorar uma criança,
E não só ela.

Quando dei por mim,
O mundo já estava em guerra
E um rio de sangue desaguava em minha janela,
Via parabólica.

Quando dei por mim,
Vi que as pessoas riam, sopravam velas,
Como se o tapete púrpura
Combinasse ali, sob a mesa, posta para o jantar.

Quando dei por mim,
Vi que não escrevia mais qualquer poema,
Que eram fios de plasma,
E que nada disso trazia uma importância.

Quando dei por mim,
Meu espelho já mostrava um rosto desigual,
Estranho,
Que não fazia o menor sentido estar ali.

Quando dei por mim,
Estava me afogando nesse mar
E meus poemas não eram mais poemas.
Eram a angústia, viva, a reclamar sua permanência,
Uma insólita e legítima cidadania.

Quando dei por mim,
Já havia nascido uma outra árvore no colo,
De raízes bem mais profundas,
Fincadas nesse terreno a que chamamos alma
E que rego quase todos os dias com estas lágrimas
Que não param de cair.

E fiquei viciado em dar por mim e me devorar,
Porque também entendi
A elegante metáfora dos vermes,
Que é se alimentar dos homens e de tudo
E que hoje prezo muito poder imitar e aprender.

Quando dei por mim, estava lá,
No meio de todas essas coisas, que pareciam mudas,
A dizer o que eu precisava urgentemente saber.

Quando dei por mim, estupefato, ali, ouvindo,
Procurei a ilusória proteção do medo
Que já ia muito longe, bem longe do meu querer.

E ando assim, dando por mim em cada milímetro,
Em plena transfusão de gestos, partículas,
Sofrendo feliz a dor de parir cada vão momento,
Pelas frestas, fendas, deste que se dá
E que, sendo eu mesmo, dá-se por mim
Sem dar-se por contente.

Outro dia dei por mim
Me descobrindo tal e qual um medíocre
E já estava esquecendo quando um amigo,
Generoso,
relembrou-me desta minha humílima condição.

A verdade é que dou por mim, esquecido,
Outra condição que não me difere dos outros,
Posto que ninguém lembra de dar-se conta do que é.

Sou também fantasma, disfarçado nessa posta de carne,
O que me deixa à vontade para copular e procriar.
E observando essa prole, saber de mim, nesse espelho,
Nessa troca reflexiva, prenhe de novas ideias, me saber.

Aprendi isso então, a me dar por todas as horas,
Porque outro não vai se dar ao trabalho
De arrancar máscaras enquanto estou distraído,
Sem dar por conta de mim.





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Milton Filho/31.08.13





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