Aos que vão nascer (Bertolt Brecht)
Data 17/10/2013 23:43:21 | Tópico: Poemas -> Sociais
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I É verdade, eu vivo em tempos negros. Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas Indica insensibilidade. Aquele que ri Apenas não recebeu ainda A terrível notícia.
Que tempos são esses, em que Falar de árvores é quase um crime Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades? Aquele que atravessa a rua tranqüilo Não está mais ao alcance de seus amigos Necessitados?
Sim, ainda ganho meu sustento Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço Me dá direito a comer a fartar. Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou perdido.)
As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque tem! Mas como posso comer e beber, se Tiro o que como ao que tem fome E meu copo d’água falta ao que tem sede? E no entanto eu como e bebo.
Eu bem gostaria de ser sábio. Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria: Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve Levar sem medo E passar sem violência Pagar o mal com o bem Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los Isto é sábio. Nada disso sei fazer: É verdade, eu vivo em tempos negros.
II À cidade cheguei em tempo de desordem Quando reinava a fome. Entre os homens cheguei em tempo de tumulto E me revoltei junto com eles. Assim passou o tempo Que sobre a terra me foi dado.
A comida comi entre as batalhas Deitei-me para dormir entre os assassinos Do amor cuidei displicente E impaciente contemplei a natureza. Assim passou o tempo Que sobre a terra me foi dado.
As ruas de meu tempo conduziam ao pântano. A linguagem denunciou-me ao carrasco. Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima Estariam melhor sem mim, disso tive esperança. Assim passou o tempo Que sobre a terra me foi dado.
As forças eram mínimas. A meta Estava bem distante. Era bem visível, embora para mim Quase inatingível. Assim passou o tempo Que nesta terra me foi dado.
III Vocês, que emergirão do dilúvio Em que afundamos Pensem Quando falarem de nossas fraquezas Também nos tempos negros De que escaparam.
Andávamos então, trocando de países como de sandálias Através das lutas de classes, desesperados Quando havia só injustiça e nenhuma revolta.
Entretanto sabemos: Também o ódio à baixeza Deforma as feições. Também a ira pela injustiça Torna a voz rouca. Ah, e nós Que queríamos preparar o chão para o amor Não pudemos nós mesmos ser amigos.
Mas vocês, quando chegar o momento Do homem ser parceiro do homem Pensem em nós Com simpatia. Bertolt Brecht (1898-1956), escritor alemão.
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