Novelos de morte em madrugada azul

Data 18/03/2014 22:28:48 | Tópico: Crónicas

Na penumbra da madrugada circunspecta amarfanha os pensamentos, assim sem cordéis que lhe dêem forma, amarrota-os simplesmente enquanto perscruta a manhã pela vidraça opaca pelo nevoeiro que descobre por entre as persianas. O cigarro entre os dedos solta novelos de azul austero como o horizonte baço que a vista descobre lá ao fundo, onde a vista tenta chegar.
O café morno sabe ao pó da terra ingrata cujos sulcos segue mais rápido com a vista que o arado que carregou nos dias transactos, nas semanas, nos meses, nos anos transactos. Aquela terra marcada a ferro em cada ruga cujos sulcos irregulares contrastam com as rectas em direcção ao horizonte sempre a direito. Leva o cigarro à boca e sente o sabor agridoce do fumo que lhe envolve os pulmões, tossica num trejeito de ombros e levanta-se da cadeira tentando esticar a espinha numa rectidão que a mente lhe exige e o corpo já não deixa.
Pontapeia o cansaço de véspera e ensaia um passo como que se de uma dança maluca se tratasse caindo de encontro ao soalho de madeira que range num som familiar de anos e anos e tal como o cavalo a que misericordiosamente deu fim à vida, não sente compaixão por si mesmo, nem pena de quem deixa, tão só alivio… Sente o frio do soalho a envolve-lo, o cheiro da madeira ressequida, o cigarro a queimar-lhe as falanges crispadas, saudade de algo que não se lembra… Faz um esforço e agrada-lhe a ideia que terá todo o tempo do mundo para ter saudade enquanto as pálpebras lhe persianeiam as iris.



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