A bagagem de uma vida

Data 15/05/2014 16:28:45 | Tópico: Textos

No começo da rua nem parecia uma rua. Era mais uma praça espaçosa onde os limites eram feitos de brincadeira, que desembocava numa avenida de sonhos. E assim foi durante uma boa parte da caminhada, quase sem bagagem, de sangue na guelra e sem dores algumas. Mas aos poucos, sem se saber muito bem como, para além de se começar a sentir as mãos ocupadas pelo estorvilho de alguns sacos que entretanto se haviam ali colocado por causa de facilitar o transporte de algumas coisitas poucas, a avenida foi-se transformando em rua e a rua, no início larga, foi-se-lhe afigurando cada vez mais estreita. Mas agora parecia-lhe mais estreita ainda do que antes.
Só mais uns passitos e a esquina dos desenganos já a espreita.
Chegada à porta do meio século e sentindo-se já cansada da caminhada, pousa as tralhas de uma vida no chão. Malas, sacos e saquinhos cheios de coisas... talvez coisa pouca, para um pouco mais que meia vida. Coisas que tiveram a sua importância na época devida. Coisas alegres misturadas com outras menos felizes, coisas suadas e até coisas bastante doídas. Mas o que importa isso agora, nos tempos que correm? Se contasse ninguém quereria saber e até julgariam tratarem-se de mentiras. Portanto, mais valerá ficar calada, pois não passam de quinquilharias sem valor iguais aquelas bugigangas que se encontram nas feiras aos molhos e que quase ninguém compra por não lhes servirem para nada. De modo que, por saber tudo isso e por causa de não lhe apetecer cair no ridículo, nem se atreve a mostrar seja o que for da sua bagagem a ninguém. Não o merecem!...
No entanto, tenho a certeza de que um dia, num lugar qualquer, quando se vir sozinha, desembrulhará com cuidado cada uma das peças e recordará a sua história. É bem capaz de se emocionar uma mão cheia de vezes. Depois, enfeitará as prateleiras que haverão de ficar cheias de tanta tralha como tantos eram os sonhos do início da caminhada, quando a inocência ainda o permitia.. De quando em vez, há-de haver quem a encontre à procura de si mesma no brilho dos seus próprios olhos, sempre que estes, nas tralhas a procurarem.


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