Delírios de Rosas

Data 10/06/2014 14:40:48 | Tópico: Contos -> Romance

Fabrício Valdéz esfregou os olhos com os punhos cerrados, naquela manhã em que o cheiro de rosas brancas invadiu seu valhacouto, serpenteou sob a manta de estampas coloridas, presente dos ciganos que a cada quatro anos, no verão torrencial, armavam barracas de lonas puídas em suas terras, para vender tachos de cobres aos moradores do vilarejo, cavalos e burros decrépitos como se fossem jovens, graças a artimanha de colori-los com tintas extraídas de plantas. O cheiro de rosas penetrou em suas narinas, expulsando de vez o sono de uma noite premonitória.
Sentou-se com dificuldades, tateou o chão com os pés à procura das pantufas de cetim rotas, única lembrança de Catarina Flor, que o abandonou naquela tarde de tempestade descomunal, com as andorinhas em algaravias, e que decidira, para colocar-se a salvo dos tormentos do remorso, revelar com quantas mulheres havia se deitado no transcorrer de vida a dois. Pela primeira vez ao longo dos trinta e três anos de solidão praguejou que merda ao refletir sobre os sentidos das palavras de Catarina, seu desgraçado, réprobo, porque não carregou esta ignomínia para o túmulo!
Às vésperas de completar noventa e oito anos, trinta e três de solidão em companhia de bêbados, drogados e prostitutas, não estava certo de alcançar a cocaína que o reanimava desde que Flor desaparecera naquela tarde sob a chuva de granizo, que provocou uma desordem descomunal no vilarejo, matando porcos, cavalos, galinhas, cães e outros seres indefesos, destelhando casas e deixando por vários dias um odor putrefato.
O cheiro de rosas brancas intensificou-se ao tentar tocar a aldrava e desta vez lamentou que droga como pude magoar minha prófuga andorinha. Nesse instante uma rajada de vento descerrou as janelas e pétalas de rosas, como aves migratórias invadiram o quarto, pousando suavemente sobre a cama, ao chão, nos móveis rústicos. Milhões de pétalas foram cobrindo o corpo de Fabrício Valdéz e entre elas identificou Flor vestida de branco, dançando com leveza, tendo nos lábios e nos gestos a pureza dos justos. As pétalas foram se amontoando placidamente no valhacouto até alcançar o teto. As que não conseguiram espaço interno foram se amontoando ao redor da casa sob os olhares de lírios, de rosas.

J Estanislau Filho

Este conto faz parte do meu livro Crônica do Amor Virtual e Outros Encontros e pode ser adquirido no site da editora: www.protexto.com.br

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