GRAVADA NO TEMPO

Data 22/09/2014 13:09:51 | Tópico: Contos -> Minimalistas


Ela sonhava fazer parte da paisagem...

- Menina, não desce esses degraus, vai que escorrega? –

A voz vinha da janela logo atrás. Com irritação de criança batia o pé mas, obediente, logo sentava no primeiro degrau da escada escavada na ribanceira. Com o cotovelo na coxa e a mão no queixo, resignada, olhava o barquinho avariado balançando na beira do rio. Tempos atrás ele havia sido todo azul, mas o casco descascado só mostrava resquício da cor esmaecida.
Sentia ânsia maluca de descer as escadas e ao mesmo tempo colher florezinhas... A vontade de descer com as mãos cheias até adentrar no barco e libertá-lo daquela prisão e depois fugir com ele descendo o rio; jogaria flores n' água, fazendo de conta que alimentava peixinhos.
A ribanceira era coberta por arbustos com flores brancas e miúdas que se entremeavam no capinzal. Havia sido desmatado estreito espaço para que fosse escavada a escada de chão. Lá embaixo, a alguns metros do rio, havia uma casinha de madeira sem pintura e telhado de palha. Era cercada por coqueiros e, no fundo do pomar, sobressaia uma frondosa jaqueira e mais para trás, um lindo açaizal, cujas palmas tremeluziam ao vento. A palafita pertencia ao dono do barquinho que dançava amarrado no pequeno trapiche - um tablado de madeira com estacas afincadas dentro do rio.
Que doído era querer fazer parte daquela tela viva e não poder, pois um olhar lançado da janela era extremamente vigilante. Os pezinhos batiam no degrau de terra, agitados, por conta daquele desejo de criança sapeca, enquanto via o rio correndo lá embaixo e alguns barquinhos zarpando com a água beirando os conveses... Barquinhos minúsculos com seus motores fazendo ‘puc-puc’ e que seguiam até sumirem no horizonte. Os olhos os acompanhavam até serem engolidos pelo rio -era assim que pensava; que quando os barquinhos se apagavam na distância, era porque eles haviam emborcado n' água. Sempre que isso acontecia, retornava a vontade de descer a ribanceira e fazer parte daquela paisagem... Do trapiche com o barquinho amarrado, da casinha de palha com as árvores...

- Filha, está na hora de entrar. Quer comer vento é?

Levantava, espanava a sujeira da roupa e corria pra dentro de casa. Depois de tudo, se pendurava na janela e ficava namorando o barquinho balançando no rio dourado de raios de sonhos.



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