TEINIAGUÁ - a salamandra do carbúnculo. introito I Tantas quantos dias o ano Tem-se a cantar essas rimas, Embora as histórias primas --‘Pós engano e desengano -- Fossem-me já obras-primas... II Sem embargo, se te animas A saber d'estes rincões, Vou falar aos corações, Não por merecer estimas Ou diversas opiniões. III Sim pelas nobres razões E face aos vários humores, Onde lágrimas e suores Compensem os seus senões Como defeitos menores. IV Possam fazer bem melhores E maiores as nossas vidas! Possam, porque se perdidas As idades dos louvores, Só resta a das despedidas... V Se há verdades insabidas E ignorâncias sem tamanho, Perdoe-me as glosas d'antanho Quem -- das querências queridas -- Ler as palavras que apanho. VI Conquanto pareça estranho Narrar épica canção De nossa crioula nação, Sobre-eleva-se ao tacanho Seu extremado brasão! VII Possam, precisas ou não, Fazer-te as horas mais ricas, Do que devendo me ficas: A princesa e o sacristão Tu - lendo a lenda - os imbricas. VIII Ora espirituosas dicas; Ora visões opulentas; Possam as rimas trezentas Ser panaceia de boticas Para as almas turbulentas. IX Possam, à guisa de ementas Dispostas no cabeçalho, Ter no diário trabalho O apanágio de horas bentas Contra todo intento falho. X Possam -- as rimas que espalho -- Reunir o meu ser disperso. Desde os confins do Universo Sobre os pampas onde orvalho A aurora crioula que eu verso. XI Pois, por entendê-la ao inverso De qualquer filosofia Que fiz diária a poesia: Um dia p’ra cada verso; Um verso p’ra cada dia.
o encontro com Teiniaguá XII Sem embargo e todavia, Principia a antiga lenda . Em face de grã contenda, Um gaúcho indo à porfia A nada e ninguém se renda! XIII Mas, por solitária senda, Cortava os pampas o andante, Que há anos se fez viajante Em busca d'haver emenda Contra seu fado inconstante. XIV De facto, ele andava errante Quando viu a salamandra, Que por sobre as brasas meandra: Ornada em rubi faiscante, Corria arenosa gandra... XV À noite, piando a calhandra, Não vê senão Teiniaguá: Uma teiú que Anhangá Fez da princesa malandra Com toda magia que há.
o carbúnculo
XVI Andava aqui e acolá A cingir sua cabeça O diadema da promessa D'haver quanto se lhe dá Àquele que amor confessa. XVII Sua situação era essa: Vê a moura enfeitiçada -- Em salamandra mudada!... -- Levá-lo na noite espessa Até d’uma furna a entrada. XVIII Lá, ela mantém vigiada Arcas e mais arcas de ouro Do incalculável tesouro, Que enterrara em debandada Um antigo sultão mouro. XIX Por isso, de mau agouro Conhecem esse lugar Onde estava a pernoitar Co’a jovem cujo desdouro Tantos fora amedrontar. XX Contudo, faiscava o olhar... Face à terrível imagem Da salamandra em viragem, Ele deve atravessar Sete provas de coragem. XXI Abrindo logo passagem No fundo da furna escura Enxerga humana criatura: Outro estranho personagem De muito triste figura.
o diálogo com o Sacristão XXII É o sacristão. Procura Pôr fim àquele feitiço Que mantém o compromisso D’um cristão cuja loucura Furta ao sagrado serviço: XXIII --“De facto, foi pelo viço Da bela que, prisioneira, Me aprisionara faceira, Desgraçando à causa d'isso. Toda a terra missioneira.”. XXIV “Pois, então, de tal maneira A Teiniaguá me enamora, Que não a esconjuro, embora Pela moura feiticeira Deitasse a salvação fora.” XXV “Por fim, insana me implora Tão ardoroso carinho Em troca do santo vinho Que nos altares se adora... Para meu mor descaminho!”. XXVI “Flagrado o crime, sozinho Fora condenado à morte. Mas, mudando minha sorte, Gira o céu em torvelinho; Toda a terra treme forte.”. XXVII “Teiniaguá surge do Norte, Das margens do rio vinda Mais horripilante ainda, Que sanguinolenta coorte: Avassaladora e linda!”. XXVIII “Logo a catástrofe finda: Toda vila vem abaixo Co’o chão, em forte rebaixo! Só o silêncio deslinda A escuridão lá em baixo...”. XXIX “Viemos dar n’esse altibaixo Que é o Cerro de Jarau. Qual tenebroso sinal Onde o extraordinário encaixo D'um meteoro terminal.”. XXX “E hoje, em remoto local, Há tão-somente essa furna Onde rasteja noturna Ela, um brilhante animal E eu, de face taciturna...”. XXXI Co'a mirada mais soturna, Silencia o homem assim. Na salamandra, um rubim Faísca por cima da urna Oferecendo-a, por fim. XXXII Dissera ao outro, ainda e enfim: -- "Se tens o coração puro Mais o espírito seguro, Com coragem porás fim A esse mal em que perduro." XXXIII Após, n'aquele antro escuro, Diz o herói resposta sua: -- "Ouvi minha avó charrua Contar esse causo obscuro, Há anos em clara lua.". XXXIV E, encarando-os, continua: -- "Eu sei quem sois e quem fostes: Não mais princesas ou priostes. Não com gente a luta crua, Sim contra celestes hostes!". XXXV “Vistes erguidos os postes Dos suplícios assassinos... -- Calaste clarins e sinos, Teiniaguá, embora arrostes O entrelaçar dos destinos!... --” XXXVI “Portanto, não são mofinos Meus intentos junto a vós. Não sou juiz nem algoz Tampouco, com dedos finos, Ambiciono ouros após!” XXXVII Dito isso, traz n'uma noz O homem ao jovem sem medo Um gole de chá azedo Cala de vez sua voz E cerra os olhos mais cedo... XXXVIII Desacordado mas ledo, Enquanto jaz semimorto, Anda com só desconforto Súbito em denso arvoredo. Falando n'um transe absorto: XXXIX --”Era alma sem corpo. Em torto Caminhar por mato adentro Sete vias desde o centro... Incerto se vivo ou morto, Só silencio e concentro.”
as espadas ocultas na sombra XL “O primeiro caminho entro: Pirilampejam centelhas Do choque de espadas velhas. Tinem de tremer por dentro, Olhando senão de esguelhas!” XLI “Sombras se medem parelhas. Pelejam d’alfange à palma Sem que se veja viv’alma... Roçando-me o aço às orelhas, Só a promessa me acalma.”. XLII “Sigo em frente: Fronte calma Face ao furor sarraceno. Nunca jamais me apequeno, Pois que venha o que vier: ‘Alma Forte e coração sereno!’”.
a arremetida de jaguares e pumas furiosos XLIII “Finda a picada em ameno Campo sobre amplas coxilhas. Ciente que só maravilhas Tudo -- mesmo sob sol pleno! -- Seguindo as seguintes trilhas.”. XLIV “Vêm feras feito matilhas Assomando a mim esconsas: Pintadas e pardas onças Igual cercassem novilhas Ou vacas velhas e sonsas.”. XLV “Porém, por razões absconsas Os jaguaretês em roda Tão-só balançam a coda E eriçam pelo às responsas... Passando, nada incomoda.”.
a dança dos esqueletos XLVI “Mudando a paisagem toda N'um só lampejo instantâneo Através do subterrâneo Ando a ver lúgubre moda: Dança o esqueleto sem crânio!”. XLVII “Era um ossário coetâneo Dos Césares! Catacumba... Tocam tambor e zabumba Como se algum sucedâneo De despachos de macumba.”. XLVIII “Antes que também sucumba, Passo ossadas dançarinas À luz de vãs lamparinas. Incólume, deixo a tumba Vagueando em meio a neblinas.”.
o jogo das línguas de fogo e das águas ferventes XLIX “Galgo, após, alvas colinas E chego a perfeito inferno: Onde um fogo sempiterno Em labaredas ferinas Jorra nas neves do inverno.”. L “E frio e calor alterno Na travessia terrível... É tremor irreprimível Em face do horror superno D’uma dor d’aquele nível!”. LI “Murmurava-me inaudível: ‘Alma forte...’ Ou urro cansaço?... Vapor esguicha no espaço Junto ao fogo inextinguível, Enquanto vou passo a passo.”.
a ameaça da boicininga amaldiçoada LII “Nova paragem eu passo. Esta, um deserto sequioso! Mas aonde ando andrajoso É semelhante a um regaço Quando há repouso gostoso.”. LIII “Cerca, entretanto, do gozo Escuto o chocalho cruel: Boicininga, a cascavel Me arma um bote perigoso Com seu sibilado infiel.” LIV “Encaro a língua revel Mais as presas e a peçonha D’essa criatura bisonha, Buscando de déu em déu Outra ventura risonha.”
o convite das donzelas cativas
LV “Quando me vêm sem-vergonha Uma após outra as donzelas Cativas, malgrado belas, N’um rir que nunca enfadonha Por prazer tão-só em vê-las.” LVI “Tão enternecido d’elas Junto à sanga de olho d’água Quis que deixasse de mágoa Para melhor conhecê-las, Onde a cachoeira deságua.”. LVII “Conquanto me ardesse em frágua, Mais me contive, perplexo, Da imaginação sem nexo Que adivinha a renda à anágua Cobrindo virginal sexo...”.
o cerco dos anões LVIII “Indo para um bosque anexo, Cercaram-me anões em malta N’uma valentia incauta Com tal falar desconexo Entre animoso e peralta.”. LIX “Tentam deter-me na falta De meios de facto violentos Com caprichosos aumentos: Quer volatim; quer pernalta Vêm, acrobatas, aos centos!”. LX “Mas certo de seus intentos Repito o mote contrito. Porque já estava escrito Que mesmo com passos lentos, Atravessa-se o infinito.”.
o prêmio LXI Tudo isso é muito bonito, Mas aonde irá com tanto? Sim, fora quebrado o encanto D'aquele casal maldito Por um guasca puro e santo. LXII Ao despedir-se, entretanto, Nada aceita para si! Ruma à vila de Quaraí... Finda da noz o quebranto E o sacristão fala ali: LXIII -- “Toma a moeda. É para ti. Lembrança d’essa vitória Cuja saudosa memória De quanto vi e vivi Mereceste em tua glória.”. LXIV Ao que responde: -- ”Ilusória Antes essa vida que segue... Por mais que isso tudo eu negue, A Teiniaguá é história!” Porém guarda a moeda entregue... LXV E anos consigo a carregue Embora amargue miséria! Como se a nobre matéria Tivesse azar que persegue Com força má, deletéria.
o desencantamento LXVI Decide gastar qual féria Em mau negócio de gado. Esquecendo do passado Para empreender coisa séria, Não lembrar atucanado... LXVII E aconteceu de ser fado: A moeda traz outra moeda! E para si envereda Todo o rebanho invernado Em compra rápida e leda. LXVIII O outro, contudo, arremeda: --”Ai-Jesus! É coisa feita! E não de gente direita..." Mas o mistério lhe enreda Fama de vida suspeita. LXVIX Diante do caso ele aceita Volver à só salamanca. E saúda com voz franca" O sacristão que lhe aceita, E bendiz junto a barranca: LXX --“A maldição se me arranca Teu louvado ao Senhor Cristo!” Tal como fora previsto -- Ele ameríndio e ela branca -- Formaram um povo misto.
epílogo LXXI Ao fim e ao cabo, com isto Os pais d'essa crioula gente Um país bem diferente Lograram-nos por bem-quisto D’aquele amor transcendente. LXXII Resta-nos seguir em frente Qual soube o guasca fazer Diante de risco qualquer Sem temor, ir tão-somente Pronto p’ro que der e vier... LXXIII Assim, se a sorte couber Todos os desejos teus, Mesmo perdidos nos breus Possamos sempre dizer: --”Mestiços, graças a Deus!” FOZ DO IGUAÇU - 26 12 2010
|