
UIARA - a mãe d'água
Data 04/08/2015 13:41:36 | Tópico: Épicos
| UIARA - a mãe d'água
introito I Talvez não queiras mais ler Uma outra história tão triste Quanto a própria vida insiste Muitas vezes parecer Depois que tanto já viste. II Ou talvez já descobriste Algo que te faça rir. Senão, ao menos sorrir, Como uma espécie de chiste Engraçado de se ouvir.
III
Onde vidas a ir-e-vir Ou histórias de desengano Aquelas que ano após ano Explicam d'alguém sumir Ao sol sulamericano. IV Seria orixá africano? Ou ainda sereias d'Europa?... Uiara -- a Mãe d'Água -- galopa Nas águas do rio-oceano Onde co'a morte se topa. V Quando reverdece a copa Das castanheiras imensas; Quando, sobre as matas densas, A sumaúma ciclopa Com altas galhas suspensas:
VI
A Hileia das várzeas extensas Transbordando igarapés... Quando águas vão através Das chuvas trazendo doenças Ou tão-somente um revés.
VII
Quando, à deriva, aguapés Descem suave a correnteza. Logo, toda a redondeza Perde a terra sob os pés Que co'as águas se reveza.
VIII Na estação das cheias, a presa Abundante ao predador Faz com que seja o menor Dos males ficar ilesa Ao amazônico calor:
IX
De mirada furta-cor E negros cabelos lisos, Uiara a balançar os guizos Faz doce o morrer d'amor Pelos seus lindos sorrisos. X
Quem, ignorando os avisos, Sai a procurar por ela. Vai se afogar para tê-la, Ouvindo nas águas risos, Que o levam atrás da bela.
XI
A profundeza revela Tão-somente escuridão... Morte sem explicação Se explica aos olhos d'aquela Que lhe embriaga o coração.
XII Em meio a essa imensidão De rios e de florestas, As araras fazem festas Com alaridos em vão Sobre cabanas modestas.
XIII A gente que habita n'estas Remotíssimas malocas Pelas roças de mandiocas Recorda histórias molestas De jovens nas pororocas. XIV
Se ainda palavras ocas Crês que lês por essas folhas Ou caso tão-só de escolhas Que se entretendo colocas Entre outras imagens que olhas. XV
Não cuides já se te molhas Nas águas de rios passados, Lembrando que os afogados Ao sumir por entre bolhas Nos deixam sobressaltados.
XVI
Os olhos esbugalhados Pelo extremado terror. Testemunham-nos o ardor Com que buscaram baldados, Acima, a luz e o calor.
XVII Olha quanto pode o amor E vê quanto faz morte... Conquanto seja tão forte A atração indo à favor Da mais dramática sorte.
XVIII Se encontraste teu norte, Pela Amazônia te expandes. E, enquanto estes versos brandes, Um mal menor te conforte Embora por tão longe andes...
o encontro das águas
XIX Desce o Solimões dos Andes E encontra o Negro em Manaus. Um porto de rio onde os maus Mantêm ambições tão grandes Quanto o calado dos naus...
XX Eu... Subo ao porto os degraus, E embarco rumo a Belém. Junto comigo, porém, Trazendo feixos de paus Um velho caboclo vem.
XXI Ia rio abaixo e além A barca conosco, sozinhos. Pois lá os fluviais caminhos São os únicos também A servir os ribeirinhos.
XXII Até que os rios vizinhos Se juntam formando um só. Das barrancas, barro e pó: A água turva em redemoinhos Arranca a terra sem dó.
XXIII
O Negro, um negrume só D'água mais quente e lenta, Que aquela já tão barrenta Do Solimões que cipó Mais aguapé apresenta.
XXIV A barca sulcava isenta À linha do claro-escuro, Que o rio leva seguro. Milhas e milhas enfrenta O encontro das águas -- juro:
XXV
Águas de contraste puro, Tomo pelas mãos mandrionas. Como a maior das intentonas, Eu lentamente misturo O rio das Amazonas... --
o muiraquitã
XXVI
Noite nas tórridas zonas E o caboclo já de idade Zoa de boa vontade: --"Tu tens saudade das donas Ou as donas te têm saudade?" XXVII E continua:--"A verdade É, de facto, interessante..." Quando ali, no soflagrante, Veem uma tal novidade Que emudecem um instante.
XXVIII Pois, de facto, o navegante Às sombras do lusco-fusco Topara de modo brusco Com uma ilhota flutuante Deixando o velho patusco:
XXIX
"Contam desde lá de Cusco -- Cerca às nascentes do Rio, Nos altos do serro frio -- Causos antigos que busco, Para algum tempo vazio."
XXX
"N'um igarapé sombrio Havia certa cunhã. Admirava um talismã Guardado ao mais bravio D'entre os filhos de Tupã."
XXXI "Era o seu muiraquitã... Parecia uma rã gorda, Pingente preso por corda Feito em pedra verde e vã Que triste história recorda."
XXXII "Nada, todavia, a acorda D'esse transe ensimesmado. Longos dias n'esse estado E até o riacho transborda O choro que tem chorado."
XXXIII
"Chora por um afogado... Aquele que ali sumiu Simplesmente porque ouviu O doce canto encantado Que de Mãe d'Água partiu."
XXXIV "Mulher formosa e gentil -- Senhora das águas doces -- Uiara costuma os precoces Tomar para si no ardil Por adentrar suas posses:
o canto da Uiara
XXXV
--"Quisera, querido, fosses Amar-me sob essas águas. Se todo em mim tu deságuas, Malgrado engasgos e tosses, Esquece comigo as mágoas.
XXXVI
"Esquece de tuas bágoas No balanço d'essas ondas! Esquece as más anacondas O abraço das ampaláguas; Sequer das corais te escondas."
XXXVII
"Esquece as antas redondas Ou 'inda as piranhas do fundo. Esquece o ronco profundo Dos jacarés que tu sondas Nas águas turvas do mundo."
XXXVIII "Lembra somente que abundo Em graças p'ra te agradar: Meus lábios sei adoçar No mel das jataís fecundo Para melhor te beijar."
XXXIX "Se souberes me tocar, Tenho o calor que acarinha! Não me deixes tão sozinha Cá no fundo a te esperar Quando o prazer se adivinha."
XL "Vem me fazer tua rainha! Vem me encontrar face a face Mesmo que a morte perpasse Sobre a extremíssima linha E mais da vida te espace."
XLI "Vem aonde nada ousasse Nem ninguém nunca jamais! Vem, muito além dos mortais, Atar das almas o enlace Antes que tarde demais."
XLII "Cessa de vez os meus ais A ver-me sob a água clara. À deriva, a tua igara Sem saber aonde vais Foi se escorar na taquara..."
XLIII Dest'arte, silencia Uiara N'água ele vê em reflexo Seu castanho olhar perplexo: Demoradamente encara, Na cauda de peixe, o sexo.
XLIV Louco, tenta ósculo e amplexo Na imagem que ao tocar some... Repetindo d'ela o nome Monologa, desconexo A ideia que se lhe consome:
lamento do guaraci
XLV
--"Uiara... Por fim eu te tome Nos braços aos meus abraços! Depois de esforços, cansaços, Mais a paixão me consome, Por esses íntimos laços."
XLVI "Escusa se olhos tão lassos Tenho há tanto sobre ti... Tão lindo teu canto ouvi Que me acelerando os passos Eu logo vim ter aqui." XLVII
"Porém, desde que te vi Não pude mais ir-me embora. Quem é das águas senhora, Também senhora de mi Passaste a ser àquela hora."
XLVIII
"Recebe-me aqui-agora..." E já mergulha a buscando! Só uma onda, vez em quando, Agitava a água por fora, Lá do fundo borbulhando. XLIX Foi n'este instante nefando Que sua cunhã icamiaba Vem e vê como se acaba O encanto de Uiara o levando À sua submersa taba...
L O céu em chuva desaba Transborda nos igapós, Ilhando esses cafundós Onde 'inda boia a açoiaba Entre aguapés e cipós.
as amazonas icamiabas LI
Assim os olhares sós Da ameríndia tão moça Molhados da chuva grossa E das lágrimas que após Junto a seus pés empoça. LII A custo volta na roça Para encontrar suas manas: Chovia já há semanas... Preocupada do que possa Esperá-la nas cabanas. LIII Eram de si soberanas E todas todas mulheres. Tão donas de seus haveres... Nas selvas americanas, Veem-nas qual míticos seres: LIV Com seus bélicos saberes E habilidades guerreiras, Amazonas verdadeiras Tinham por bons afazeres Ir pelejar cavaleiras. LV Cavalgam já sobranceiras Às margens do Rio todo. Batendo-se sobremodo Contra as hostes estrangeiras Sempre com grande denodo. LVI Pintam de urucum e lodo As belas faces à guerra Espalhando em toda terra Extremo pavor no engodo D'um grito que longe aterra. LVII Mas a tribo no vale erra Com insólito costume: Da copaíba o perfume Tiravam quando se encerra Da piracema o cardume. LVIII Ornando-se sem ciúme Para os índios guaracis, Fazem apelos e ardis A lhes tirar o azedume Com seus sorrisos gentis. LIX Passam um dia feliz A se namorar na rede. É quando a amazona cede Carinhos aos frenesis Cujo calor não se mede. LX À ousada mão não impede A amazona já serena. Sua beleza morena Quem hábil toma, não pede; Fazendo valer a pena.
o mundo submerso LXI Todas, menos a pequena Do muriaquitã já baldo. Como da catuaba o caldo, De tão azeda, envenena Toda tostada de escaldo. LXII Seu fogo agora é rescaldo Que arde, mas não queima. Tanto na memória teima Como buscasse o respaldo De gente hostil e toleima. LXIII Já famosa pela reima Evita qualquer companhia. Até que n'um certo dia Doce que nem guloseima Retorna a antiga alegria. LXIV A razão ninguém sabia, Mas sonhara ela co'o morto. No sonho encontra conforto, Muito embora e todavia, Ora o visse estranho, absorto... LXV Conta que este mundo é torto E o outro, o submerso, era certo. Sob águas tinha desperto: Uiara lhe havia transporto Sem saber se é longe ou perto. LXVI E onde imaginam deserto Da gente do fundo é cheio. É de lá que o saber veio, Fazendo o pajé experto Sobre as ervas de seu meio. LXVII --"Quando eu vir -- Diz sem rodeio -- "Eu te levarei comigo. Fugiremos do perigo De se viver tão alheio Quem, amante, finge amigo." LXVIII "Da icamiaba o hábito antigo De se excluir d'aldeia os machos Me fez percorrer os riachos: Busquei da Mãe d'Água o abrigo Fugindo dos populachos..." LXIX "Quando a vi, penteava os cachos Às margens d'uma lagoa. Era metade pessoa... Metade peixe! E uns fachos De luz como se coroa!..." LXX "Ela me viu na canoa E cantou seu lindo canto. Todo tomado de encanto, Eu me sentei junto a proa E logo cai em quebranto..." LXXI "Espera por mim enquanto No fundo do Rio eu ir. Volta de novo a sorrir! Deixa de lado teu pranto, Quando daqui for partir."
epílogo LXXII Calou-se o caboclo a rir Já me tirando do enlevo... À noite na mata escrevo História que fui ouvir E nada mudar me atrevo. LXXIII Saúdo enfim -- porque o devo -- À gente d'aquelas zonas Onde Uiara e suas eufonas: Mito que corre longevo O rio das Amazonas. Betim - 07 07 2015
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