XANGÔ - o orixá da justiça

Data 02/09/2015 09:09:39 | Tópico: Épicos

XANGÔ - o orixá da justiça
introito

I

Bahia, todos os santos
Te celebram a grandeza!
Terra onde até o mar reza.
Quer pela força dos bantos
Ou dos malês a nobreza.

II

Mas dos nagôs, com certeza,
A trilha que adentra o oculto.
Manifestada no culto
A ancestrais na Natureza
Que co'os búzios consulto.

III

Mulheres e homens de vulto
-- Negros d'África oriundos --
Veem os seus filhos fecundos
Dançando em meio ao tumulto
D'esses tambores profundos

IV

Horas, minutos, segundos...
A Gira a gira-girar
Se o santo toma lugar
Ao transitar entre mundos
Para o terreiro adentrar.

V

Se acaso saracotear
Uma baiana senhora,
A mocidade apavora...
Pois sabe vê-la rodar
Até que clareie aurora!

VI

Os santos que ali se adora
São chamados de orixás.
Pessoas que, boas ou más,
Souberam viver sua Hora
Vencendo ante guerra e paz.

VII

E a memória que se faz
De suas vidas e glórias
São revividas histórias
D'aqueles cuja alma audaz
Resiste a leis ilusórias.

VIII

Contra discriminatórias
Actitudes de somenos
Vão em procissão, serenos,
Certos de suas vitórias
Face a grandes e a pequenos.

XI

Quem só com fel e venenos
Demoniza a sua fé
Crê-se mais perfeito que é
Quando sequer é, ao menos,
Homem a encarar de pé.

X

Cogito que seja até
Metade do homem que acusa
Com uma fala confusa,
Que faz da vítima ré
E herói d'aquele que abusa...

XI

É algo que já não se usa
Ter por maligno o diverso.
Embora tão controverso,
Que esperança assim conduza
Um povo ao mundo disperso...

XII

Quando Deus criou o Universo,
Não fez do homem o mais forte.
Se o outro não crê, não me importe!...
Malgrado o digam perverso
Condenando-o, infiel, à morte.

XIII

Mesmo que a crença conforte,
Jamais devia impelir
Povo algum a se agredir.
Pode-se afirmar, com sorte,
Que o real pecado é excluir...

no terreiro da casa branca do Engenho Velho


XIV

Quando a ladeira eu subir
Para ver meu pai Xangô.
O repique do agogô
Eu quero, encantado, ouvir
Onde o pai, o filho e o avô.

XV

Quero a bênção de Nhô-nhô
E os conselhos de Sinhá.
Quero a força que a aura dá,
Se dendê, quiabo-gombô
Em oferenda a Oxalá.

XVI

E quero a alegria que há
Deixando o mal pelo bem.
D'onde a esperança me vem
Não porque perdida já,
Sim p'la vitória que tem.

XVII

Pedir licença convém
Para se entrar no terreiro
E, como bom brasileiro,
Peço a meus santos também
Já de janeiro a janeiro:

louvado de todos os santos


XVIII

--"Salve são Jorge, o guerreiro
Em luta contra o dragão.
Mártir são Sebastião
Que crivado no madeiro
É nossa consolação."

XIX

"Salve a santa do trovão:
Bárbara, que ao sertão troa.
Louvada e santa pessoa,
Em junho, viva são João!
E mais de são Pedro a loa."

XX

"Mas salve a Virgem tão boa
Que o povo faz mais feliz
D'entre o louvores que fiz,
Santo Antônio de Lisboa
E são Francisco de Assis."

XXI

"Louvar os santos eu quis,
Mas falta louvar enfim
Jesus, salvador de mim.
Glória e aleluia se diz:
Cristo, o Senhor do Bonfim."

XXII

"Louvo, portanto e por fim,
Mulheres e homens da terra.
A gente humilde que encerra
Em si seu sagrado sim
Ao mistério que a Hora aterra.

XXIII

"Louvo, na paz e na guerra,
Àquele que aqui me trouxe.
Xangô, meu pai, seja doce
A morte de quem se aferra
Que o mundo mais justo fosse. "

XXIV

"Defenda eu a herança e a posse
Que me vem desde os antigos;
Saiba honrar filhos e amigos
A incutir-lhes bem precoce
Destemor face aos perigos"

XXV

"Na vitória, os meus inimigos
Aprendam de mim confiança:
É Justiça, não vingança
Sempre o melhor dos abrigos
Onde pôr nossa esperança."

XXVI

"Na derrota, haja lembrança
Dos combates mais renhidos...
Heróis jamais são vencidos,
Se nos pratos da balança
Bem provados e medidos."

XXVII

"Para que co'os dons obtidos
Combater o bom combate
Seja o correto arremate
De tantos anos vividos
Sob o pendão escarlate".

o discurso de Xangô

XXVIII

E assim respondeu-me o vate:
--"Sê bem-vindo quem vem bem!
Feliz o que olha p'ra além
De qualquer humano embate
A luz que a Justiça tem."

XXIX

"Quem é da verdade vem
Co'os olhos francos, de pé.
E, altivo, consegue até
Conhecer no meio de cem
As vozes do candomblé."

XXX

"Verdadeiro acto de fé,
Crente -- por assim dizer --
É bem se atrever a ser
Sem ser, de facto, quem é
E, mais que olhar, saber ver."

XXXI

"Não temas mais t'esconder
Em numerosos segredos...
Cuida que jamais tais medos
Consigam te demover
De teus projetos mais ledos."

XXXII

"É dia de festa! Credos
De toda Terra acorrei!
Eu, que entre bravos lutei,
Nas pedreiras e arvoredos
Minha vitória alcancei."

XXXIII

"Já fui homem, já fui rei.
Onde mor memória se há,
Luzindo meu nome está
Pela glória que encontrei
Quando o fado estrela dá."

XXXIV

E saudava: --"Saravá!
Vem na luz quem é da luz!
Quem a seus irmãos conduz
Lá pelos jardins d'Alá
Ou na glória de Jesus!"

XXXV

"Senhor do Bonfim na cruz
Ou o Profeta no crescente
No coração d'essa gente
Onde a verdade reluz
Como um sol, eternamente..."

XXXVI

"Mas triste é ver logo o crente
Hostilizar seu irmão...
E detonar-se a explosão
Que arremessa, indiferente,
Dúzias de corpos ao chão!..."

XXXVII

"É ver em seu coração
Uma fúria que odeia e mata:
Amigos de longa data
Se desconhecem então,
Iniciando rixa ingrata..."

XXXVIII

"Nada mais fácil desata
Um nó intrincado ainda
Que outra guerra santa e infinda,
Que aos terreiros desbarata
Com ordem de igrejas vinda..."

XXXIX

"Mas essa gente tão linda
Que ao Engenho Velho acorre
Há tempos ninguém socorre:
Malgrado de luz prescinda,
Por obscuros becos, morre..."

XL

"O que na Bahia ocorre,
Acontece em toda parte:
Quem crê diferente parte
E para os cafundós corre
Escondendo-se fé e arte."

a história de Xangô


XLI

Calou-se o Santo dest'arte,
Entristecido decerto:
A intolerância há aberto
Feridas que ele comparte
Pelo coração deserto.

XLII

Perguntei: --"Meu pai, por certo,
Quem é esse que me fala?
Parece um rei, mas se cala...
Longe, o seu rosto encoberto,
Porque o vejo n'essa sala?

XLIII

O velho apruma a bengala
E diz:--"Xangô das pedreiras!
Senhor das hordas guerreiras,
Cujo relâmpago estala,
Abrindo sete cachoeiras!!!"

XLIV

"De verdades verdadeiras
Que o justo faz a Justiça!
Na guerra teve a premissa
De lutar desde as primeiras
Centelhas que o fogo atiça."

XLV

"Se odeia a morte e a cobiça,
Ama o correto e o direito.
Mas sempre ao batuque afeito,
Se a festa a seu povo viça,
Festeja o rei satisfeito."

XLVI

"Seja com enxadas no eito;
Seja com foices na luta;
Todo o exército executa
Ao seu comando perfeito
Quando em renhida disputa."

XLVII

"Mas o inimigo lhe imputa
Duras perdas na peleja...
Embora cercado esteja,
N'uma formação astuta
Consegue quanto deseja."

XLVIII

"E ainda que então se veja
Rechaçado a cada avanço,
Contra-ataca sem descanso
Sua vanguarda que almeja
Todo o terreno expanso."

XLIX

"Todavia, fora um lanço
Previsto pelo adversário:
Em roda, em ataque vário,
Massacram com fúria e ranço
Àquele grupo solitário."

L

"Vendo o destino arbitrário
Que vitimou seus guerreiros,
Xangô fulmina os outeiros
Co'o machado temerário
Rompe penedos inteiros!"

LI

"Esses furores certeiros,
Bramindo com tal violência,
Tivera ao tomar consciência
Da barbárie onde estrangeiros
Ceifam dos seus a existência."

LII

"Os feridos, sem clemência
São torturados e mortos.
Ouviam todos, absortos,
Uivos d'extrema dolência,
Rostos rasgados e tortos..."

LIII

"E os mais macabros desportos
Onde bolas das cabeças...
Brincam, crianças às avessas,
Com tais corpos boquitortos
Urrando ameaças expressas."

LIV

"Face a uma loucura d'essas,
Xangô com fúria responde.
Batendo sem saber onde
Revira os céus de promessas
Contra quem dele s'esconde."

LV

"E embora às estrelas sonde
Justiça, jamais vingança,
Jura com tal segurança
Que raios rachavam a fronde
De árvores à sua andança."

LVI

"O ímpeto trouxe esperança
Aos guerreiros combalidos.
Vendo até morros batidos
Pelo machado, a lembrança
Deixam por fim dos caídos."

LVII

"Avançam todos unidos
Ao alto clamor de seu rei.
E vencem àquela grei
De invasores que, rendidos,
Anseiam de Xangô a lei."

LVIII

"Sim, porque conforme sei,
Pediam que, olho por olho,
Tratassem quem no ferrolho
Aguarda o juízo... Olhei
E vi os presos no encolho...

LIX

"Quanto da história recolho
Foi de ver e ouvir falar.
Quando, naquele lugar
Rosto retalhado e caolho
Deixaram a amedrontar."

LX

"Mais e melhor torturar
Seu ministério queria,
Porém, Xangô exigia
Conforme a lei se julgar
Cada detido que havia."

LXI

"Assim, ao líder cabia
O mal por mal ordenado
E à morte foi condenado.
O resto, Xangô sabia
Que apenas tinham lutado."

LXII

"O caso, bem reputado,
Ficou de jurisprudência.
Demonstrou toda a excelência
Com que pôde, de seu lado,
Xangô julgar a inocência"

LXIII

"De facto, com deferência
Recorda o povo nagô
As histórias de Xangô
No mundo e na transcendência
À oferenda de gombô."

despedida do terreiro


LXIV

Ao fim, falei a Nhô-nhô:
--"Feliz o ouvido que ouviu
E feliz o olho que viu
Quanto, desde o mil-avô,
Faz memória ao que existiu. "

LXV

"Feliz quem como eu sentiu
Bater forte o coração
Quando pela multidão
Na rua o afoxé partiu
Em sons de negra emoção."

LXVI

"O que tenho é gratidão
Só por ter estado aqui!
Por tudo o que vi e ouvi
A alma na palma da mão
Eu, deslumbrado, senti.

LXVII

"Levo do que conheci
O mais profundo recordo.
Se de alegria transbordo,
É porque um sonho eu vivi
E d'ele jamais acordo."

epílogo


LXVIII

Deixo a Bahia de acordo,
Que tudo lá é intenso.
E tudo é maior do que penso...
E tudo é mais do que abordo...
Dentro d'um amor imenso.

LXIX

E as almas grandes que incenso
São maiores quando seu povo
Faz com que exista de novo
D'África, outro reino extenso,
Que no quiabo ao dendê provo.

LXX

Fé na alegria eu renovo
Sempre, quando em Salvador,
Eu vejo o mundo melhor.
Lá a riqueza, eu comprovo,
Ser mais saber e sabor...

LXXI

A vida, seja o que for,
Pode ser bem mais bonita.
E, quando a gente acredita
Firme no poder do amor,
Essa beleza é infinita.

LXXII

Uma esperança bendita
É tudo o que quero ter,
E não me cegar por ver
Tanta gente que conflita
Tão-só por estar e ser.

LXXIII

Bahia, saiba eu querer
Não viver tão triste e só!
E Xangô, de amor e dó,
Ensine-me a bem viver:
--"Axé, Alaafin d'Oyó!!! "

Belo Horizonte – 28 08 2015


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