
O Cemitério Marinho (Paul Valéry)
Data 28/02/2016 01:06:33 | Tópico: Poemas -> Intervenção
|  Esse teto tranqüilo, onde andam pombas, Palpita entre pinheiros, entre túmulos. O meio-dia justo nele incende O mar, o mar recomeçando sempre. Oh, recompensa, após um pensamento, Um longo olhar sobre a calma dos deuses!
Que lavor puro de brilhos consome Tanto diamante de indistinta espuma E quanta paz parece conceber-se! Quando repousa sobre o abismo um sol, Límpidas obras de uma eterna causa Fulge oTempo e o Sonho é sabedoria.
Tesouro estável, templo de Minerva, Massa de calma e nítida reserva, Água franzida, Olho que em ti escondes Tanto de sono sob um véu de chama, -Ó meu silêncio!... Um edifício na alma, Cume dourado de mil, telhas, Teto!
Templo do Templo, que um suspiro exprime, Subo a este ponto puro e me acostumo, Todo envolto por meu olhar marinho. E como aos deuses dádiva suprema, O resplendor solar sereno esparze Na altitude um desprezo soberano.
Como em prazer o fruto se desfaz, Como em delícia muda sua ausência Na boca onde perece sua forma, Aqui aspiro meu futuro fumo, Quando o céu canta à alma consumida A mudança das margens em rumor.
Belo céu, vero céu, vê como eu mudo! Depois de tanto orgulho e tanta estranha Ociosidade - cheia de poder - Eu me abandono a esse brilhante espaço, Por sobre as tumbas minha sombra passa E a seu frágil mover-se me habitua.
A alma expondo-se às tochas do solstício, Eu te afronto, magnífica justiça Da luz, da luz armada sem piedade! E te devolvo pura à tua origem: Contempla-te!... Mas devolver a luz Supõe de sombra outra metade morna.
Oh, para mim, somente a mim, em mim, Junto ao peito, nas fontes do poema, Entre o vazio e o puro acontecer, De minha interna grandeza o eco espero, Sombria, amarga e sonora cisterna - Côncavo som, futuro, sempre, na alma.
Sabes tu, prisioneiro das folhagens, Golfo roedor de tão finos gradis, Claros segredos para os olhos cegos Que corpo a um fim ocioso me compele, Que fronte o atrai a tal rincão de ossadas? Um lampejo aqui pensa em meus ausentes.
Sacro, encerrando um fogo sem matéria, Pouca de terra oferecida à luz, Prezo este sítio, que dominam tochas, Composto de ouro, pedras e ciprestes, Onde mármores tremem sobre sombras. O mar lá dorme, fiel, sobre meus túmulos.
Cadela esplêndida, afugenta o idólatra! Quando, sorriso de pastor, sozinho Apascento carneiros misteriosos - Branco rebanho de tranqüilos túmulos - Afasta dele as pombas temerosas Os sonhos vãos, os anjos indiscretos.
Aqui vindo, o futuro é indolência. Nítido inseto escarva a sequidão; Tudo queimado está desfeito e no ar Se perde em não sei que severa essência, Faz-se a amargura doce e claro o espírito.
Os mortos estão bem, sob esta terra Que os aquece e resseca seu mistério. O meio-dia no alto, o meio-dia Quedo se pensa em si e a si convém. Fronte completa e límpido diadema, Eu sou em ti recôndita mudança!
Eu, somente eu, contenho os teus temores! Meus pesares, limitações e dúvidas São a falha de teu grande diamante... Em sua noite grávida de mármores, Entanto, um povo errante entre as raízes Tomou já teu partido, lentamente.
Dissolveu-se na mais espessa ausência; Bebeu vermelho barro a branca espécie; Passou às flores o dom de viver. Dos mortos, onde as frases familiares, A arte pessoal, as almas singulares? Tece a larva onde lágrimas nasciam.
O riso agudo de afagadas jovens, Olhos e dentes, pálpebras molhadas, O seio ousado desafiando o fogo, Sangue a brilhar nos lábios que se rendem, Últímos dons e dedos que os defendem - Tudo se enterra e ao jogo outra vez volta.
E tu, grande alma, acaso um sonho esperas, Despido, então, das cores de mentira Que a estes meus olhos a onda e o ouro mostram? Cantarás, quando fores vaporosa? Tudo flui! Porosa é minha presença; A sagrada impaciência também morre.
Magra imortalidade negra e de ouro, Consoladora com horror laureada, Que seio maternal fazes da morte - O belo engano, a astúcia mais piedosa! Quem não conhece e quem não repudia Esse crânio vazio, o riso eterno?
Pais profundos, cabeças desertadas, Que sob o peso de tantas pàzadas Terra sois, confundindo os nossos passos! O verdadeiro verme, irrefutável, Não para vós existe, sob a lousa Ele de vida vive e não me deixa.
Amor, talvez? Talvez ódio a mim mesmo? Seu dente oculto está de mim tão próximo Que qualquer nome, acaso, lhe convém. Que importa!... Ele vê, quer, sonha, ele toca: Minha carne lhe agrada, e até no leito Vivo de pertencer a este vivente.
Zenão, cruel! Zenão, Zenão de Eléia! Feriste-me com tua flecha alada, Que vibra, voa e que não voa nunca. O som engendra-me e a flecha me mata! O sol... Ah, que sombra de tartaruga Para a alma, Aquiles quedo e tão ligeiro!
Não, não!... De pé! No instante sucessivo! Rompe meu corpo, a forma pensativa! Bebe meu seio, o vento que renasce! Esta frescura a exalar-se do mar A alma devolve-me... Ó, poder salgado! Corramos à onda para reviver!
Sim, grande mar dotado de delírios, Pele mosqueada, clâmide furada Por incontáveis ídolos do sol, Hidra absoluta, ébria de carne azul, Que te mordes a fulgurante cauda Num tumulto ao silêncio parecido,
Ergue-se o vento! Há que tentar viver! O sopro imenso abre e fecha meu livro, A vaga em pó saltar ousa das rochas! Voai páginas claras, deslumbradas! Rompei vagas, rompei contentes o Teto tranqüilo, onde bicavam velas!
Paul Valéry, França, 30 Out 1871 // 20 Jul 1945. Poeta/Ensaísta/Crítico. Trad. de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Confia.
Eye Surreal art by Rizelli.
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