
É menos difícil ser flor
Data 19/04/2016 15:38:57 | Tópico: Poemas
| Até toda a flor velha que o tempo despreza Poderá um dia resgatar do jarro a sua beleza E com o arrastado fulgor do viscosa floema, Selará no seu caminho um espantoso tema.
Por aqui julgo eu com desditoso desdém Abominar os meus passos por sabê-los aquém E nem por isso encontro um mais certo prumo Que faça de mim homem, arte, graça e rumo.
Mas a sujeira do ar que à força de ser poeira Tão bem recobre as ajudas de complacente cegueira. Entranha-se o engano no pavilhão do meu ouvido Com o faustoso diploma de um curso sem sentido.
Atravessei sempre às cegas os caminhos importantes E as minhas convenções, por certo, beligerantes Atascaram na desorientação, em esperança pecaminosa, Os belos dias daqueles que aceitaram minha rosa.
Porém a mim próprio também eu feri certeiro Como o inocente animal que se coça em cativeiro E adiantei à dor um espantoso grito Que aqui assim cantado não parece tão aflito.
Num transe inconsciente, em espontânea sessão Caiu de borco, desamparada, a minha certa razão. Uma tenaz vontade feriu minha carne passageira E logo algum purpuro sangue foi libado à minha beira.
Estava agora em densa selva, sem vestígios de metais Vários cacos de cerâmica ali se faziam reais Vivaz máscara assimétrica ao meu rosto prometia Fazer jorrar todo o sangue que ainda em mim corria.
Até um chefe tribal eu podia então tolerar Uma língua morta a falar, uma voz gutural a cantar, Então um grito, vagido bem animal, despertou logo os sentidos E vi uma árvore rara e seus frutos não comidos.
Maravilhado em tão espantosa exceção, derivei, Enleado por uma nova promessa, como se fosse rei Imaginei um altar no sol intermitente desta peça E num batismo de mil seivas, meu coração andou depressa.
Porém, pouco depois, o crepúsculo já se anichara No velho mundo do conceito e da tola ideia avara As exigências da noite próxima faziam já seu murmúrio Escudadas em tradições dos que escrevem todo o augúrio.
Por sorte adormeço bem, assim em suave levada Mas logo assoma um barco aflito em sua capital jornada É pesadelo agitado que eleva as vagas aos argonautas Já então estes gritam palavras roucas de incautas.
Línguas de Babel pois só seus olhares entende o peito Lançam chispas obstinadas num cirandar contrafeito Surge a espuma enluarada como rosto acusatório Canta os Fados do destino, com acordes de velório.
A embarcação já vencida, singra bem longe da gente Clamores e braços traduzem um medo forte e presente Tanto que a solitária agonia e a luz vertical que a secunda Iluminam e aquecem a parte da alma mais funda. Cada homem sente-se só, com absoluta indiferença Pelos náufragos vizinhos dessa boca de inclemência Meu corpo partilha, ele próprio, de tão caloroso festival E a rúbrica definitiva, descobre o meu código postal
Tal tormento terminou quando me dei em pensar Nos meus que cá ficariam sem meu corpo para velar Assim a dor física deixou-me, mas ao mesmo tempo agora, São amargos os lamentos que se servem nesta hora.
Mas o que vem a ser isto?! Tal enredo é falaz! Sem pais, irmãos, nem mulher, não tenho rapariga ou rapaz O pai do sonho era outro, um refugiado qualquer Que pela tarifa do barco, pagou um eterno aluguer
Convém lembrar afinal que estou em espiritual retiro Em selva com gente diferente e muito dada ao suspiro São um povo primitivo, que não dissimula no banho Quando muito pela caça, fazem seus truques de antanho.
Serei também refugiado, um dos que marcha, clandestino, Na rota mais tormentosa do esquecimento vespertino Cenários tão moribundos em dias certos e fecundos Fazem-me pagão completo, mas psicólogo dos segundos.
Penso e sofro a civilização, as ideias hipócritas, a água salgada… Como um néscio, que acredita no acordar de todos de enfiada A um tempo só renego e recomendo os suplicantes Sofro a razão do batuque, pátria eterna dos semblantes
Relembro os campos de trigo e seus corvos em altas notas Uma nostalgia serena sai do olhar das minhas botas Lamento não ter o talento desse tal ruivo holandês Falta-me ainda coragem para fazer o que ele fez.
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