Era um tempo em que ...

Data 28/02/2008 22:07:41 | Tópico: Poemas -> Surrealistas

Era um tempo em que das chaminés da Central
ali ao lado
se escorriam lestos fantasmas hasteados na fuligem baça da calçada.

Sentava-se operária na beira pontiaguda da vereda,
descalçava a luva esquerda
e depois, de seguida, em gestos desiguais, um a um, todos os dedos
da sua mão direita.
Mecânica, puxava de si p’lo antebraço dos medos, em livro aberto,
refundia-se casta no que retinha memoriado de um tempo de jograis,
e ali mesmo, no murmúrio ainda quente de segredos,
lia-o lento e devagar, vogava cílios e pálpebras
e as palavras cravam-lhe o corpo ensanguentando-o,
no ferro delicado de punhais.

Morria em cada sílaba silabada,
em cada verbo contornado, caldeava mágoas se abria, sem chave,
o trinco-arpão de um cadeado.

[A chuva miudinha caía agora desabrigada sobre o chão pleno
da sua mais crua verdade].

Na discórdia estruturante onde viva jazia
bebia o cálice da detença, gota a gota, negra bruma,
e sucedia-se distensa, alongada em cada poça de lama chapinhada.

… era um tempo de noite madrugada.




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