A minha agenda

Data 02/08/2016 20:20:14 | Tópico: Textos -> Surrealistas

A minha agenda
Gostava e não gostava… que vissem a minha agenda telefónica que data de janeiro de 1950, quando vim morar de novo para Lisboa. Quando me casei estive em casa dos meus sogros um ano ou pouco mais e depois resolvemos ir para a nossa casa e alugamos uma na Amadora. Ao fim de um ano saturados, viemos para a capital de novo. Ao fim de uns seis anos fomos morar para o Restelo, aí sim que belos anos! Aí foi de novo reinstalado o telefone é verdade e que maravilha era nesse belo tempo, utilissimo! Então como fazia falta a agenda, era necessária para poder anotar novos números, contactar com a família, amigos, e médicos etc… naturalmente, estava sempre connosco. Os primeiros dados que apontei nela, tudo nos conformes, números redondinhos, letra certinha, belo tracto, sim, guardado na gaveta com a caneta sempre no seu posto avançado. Mas verdade é que ultimamente já nem sabia onde a caneta parava e tinha que ir arranjar outra à pressa para apontar qualquer coisa, descuido evidente. Depois o pouco tempo, muito trabalho mais crianças, começou a faltar ocasião para assentar de imediato, e comecei a pôr bilhetinhos a escrever de qualquer maneira…instalou-se a baralhada. Quando a conversa se estendia nem sempre estava muito concentrada, o tempo a passar o trabalho por fazer então começava a desenhar na coitada da agenda, caras que se calhar eram o reflexo do meu estado de alma naquele momento. Depois era difícil compreender aqueles traços, desenhos, graciosos, palermas, geométricos e tudo mais que me vinha á cabeça. Os novos números ficavam encavalitados nas linhas e difíceis de perceber, mas sempre os entendia ao fim e ao cabo. Ainda a tenho, conservo-a com carinho, a capa ainda está preta, um pouco baça e escassos os vincos dourados. Tem umas poucas braçadeiras de fita-cola a segurar a capa e as descoladas folhas. Depois do ipsolon está mais limpo, só uma coisita ou outra, todo o resto parece, Deus meu, um estudo picassiano. Papéis colados, desenhos, números riscados, rasurados, as folhas intercaladas de variadíssimos papéis velhos com gatafunhos de cores e feitios, datas antigas, apontamentos, pelos cantos e enviesados, letras, algarismos e rabiscos até no reverso das capas… uma vergonha. Veio o progresso e os telemóveis, registam tudo e lá ficam gravados todos os requisitos, mas não tenho coragem de a deitar fora embora já nem tenha telefone fixo ela continua na gaveta sem préstimo nenhum a ocupar espaço, será pateta mas verdadeiro. Gosto de a olhar e sentir nas minhas mãos. Por quê? Não sei…talvez pelo sentimento a uma companheira de horas de vida, sim é isso! …



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