Prelúdio

Data 04/09/2016 10:36:42 | Tópico: Prosas Poéticas

Eu ouço passos apressados. De pés que pisam com rancor no chão amadeirado. Como um predador à procura. Voraz. Imponente. Prestes a dominar sua caça. As luzes estão apagadas e a casa vazia. Exceto pela presença de mim. E dos passos apressados. Me recobro de fios de algodão e de horror. A porta do quarto está entreaberta. E do meu cobertor, sobressalta um olho. A retina do meu glóbulo ocular esquerdo presencia a mais assombrosa cena de sua vida útil. Uma sombra monstruosamente gigantesta, sobrehumana, peranbula pelo corredor. Sem adentrar o cômodo. Num instante, o que era sombra, agora é apenas um feixe de luz. Instante. Segundos. Tempo o suficiente para pestanejar e acordar em um sonho perturbador. Eu sinto medo. Do inimigo que ronda meus aposentos. Eu ouço passos e dobradiças chiando. Passos e dobradiças. As portas e janelas do casarão foram implantadas nos anos 70 e jamais substituidas. Por isso são repletas de sinfonia. Mas nunca imitaram o som das andanças humanas. Os passos seguem firmes. Como de alguém que pisa com o calcanhar. Num ritmo acelerado. Esse tal andande de passos abruptos continua a sua ronda. E eu continuo ouvindo seus passos. Agora também, o som da maçaneta. Mas não a maçaneta do quarto. Uma outra qualquer. Talvez a da porta dos fundos. De repente não há mais som algum. Um silêncio abrangente acaricia meu desespero. Como um afago. Caio no sono. Lentamente. Desperto no meio da noite suando pavores. Respirando precárias. Acendo a luz do quarto e reparo em um detalhe. A porta do quarto está fechada. Sem brecha alguma. Antes, semiaberta. Agora completamente fechada. Elevo minhas mãos ao puxador. Perplexo. Logo sinto uma corrente de ar emanando do corredor. E parece que vem da cozinha. Me desloco aos fundos da casa por impulso. A porta, de madeira com dois trincos de ferro e uma fechadura está escancarada. Em plena madrugada. Nao me recordo de tê-la destrancado. Saio por ela todavia. Respiro fundo me debruçando no parapeito da varanda. Observando a rua vazia de passos humanos, os carros estacionados nas calçadas, o silêncio do breu e as falhas nas lâmpadas dos postes de luz. Que horas acendem, horas apagam. Sem alguma razão. Permaneço ali. Acompanhado de minhas olheiras. E não mais retorno ao leito. Pelo menos até os primeiros raios solares do dia aparecerem e as primeiras almas andantes saírem de suas casas em marcha sincronizada à labuta diária. Com seus passos apressados, destinados. Porém humanos.


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