Eu por mim mesmo

Data 08/10/2016 20:57:56 | Tópico: Textos

EU POR MIM MESMO
I
Mon ami, Monsieur Fome



Agora estou mais tranqüilo, tenho um lugar que posso chamar de meu. Depois de anos dormindo em quartos alugados e expulsos pelos meus nervosos senhorios, sou dono do meu próprio castelo. Após perambular a esmo pelo centro histórico da Praia Grande, namorando os casarões abandonados e caindo aos pedaços, encontrei por um acaso um que se esqueceram de passar o cadeado. E sorrateiramente fui tomando posse e fazendo alguns consertos necessários. E um prédio colonial de um andar com cinco portas janelas com sacadas de ferro, localizado no início da rua da Estrela,próximo do Convento das Mercês,o mesmo que o Presidente Sarney grilou na maior cara de pau e do antigo escritório da Oleama. Estava dormindo nos bancos da Praça Benedito Leite, depois que fui chutado bruscamente do prédio Couro de Onça de Dona Honoria na travessa da lapa no Portinho, um ano de inadimplência. Sai somente com meu saco com alguns andrajos e está velha Olivette que achei no lixo e um amigo a consertou para mim.
Mas tudo é passado é bem passado a ferro de vapor. Não guardo magoa. O fundo desabou, moro em cima na parte da frente, a escada é de corda. Quando subo a enrolo e assim evito visitas inesperadas. As outras portas estão bem fechadas. A que entro, passo a corrente é um grosso cadeado. Durmo sob um velho carcomido colchonete. Sem mobílias. A não ser umas caixas que guardo as poucas coisas que tenho. Uns caixotes servem de mesa, uma rede velha que ganhei de uma cliente e lógico os meus livros. Tenho todo um salão a minha disposição, bem assoalhado, as paredes estão trincadas pelas goteiras, uma parte do forro de madeira caiu no ultimo inverno. Esse é o meu pior pesadelo, as chuvas. Nessas épocas durmo pouco, com medo do teto desabar. No térreo, é a minha cozinha improvisada no canto do quintal, e a latrina. A energia elétrica e água são ligações clandestinas. Um velho jeitinho brasileiro.. Há tenho uma cadeira espreguiçadeira improvisada com saco de aniagem.
E como todo bom sem teto, tenho um parceiro fiel, convivemos a alguns tempos logo que tomei posse definitiva do ‘castelo’ – É obediente, desconfiado,mas um bom parceiro. É o meu velho amigo Fome,o meu cão de guarda. Quando nos conhecemos, estava em péssimo estado, sarnento,esquelético e pulguento. Foi amor a primeira vista. Estava catando um rango na lixeira do mercado, e ele deitado,fraco de fome que nem latia, apenas gemia baixinho lamentando a sua triste sina. Nossos olhos se cruzaram. “Pauvre Chien” – pensei ao vê-lo todo se tremendo de frio e fraqueza. Aproximei-me cautelosamente, agachei-me tentei acariciar-lhe a sua feridenta cabeça, ele tentou rosnar, mas não conseguiu e desmaiou.. Apanhei-o com cuidado e o coloquei no carro de mão, meu instrumento de trabalho. E o trouxe. Naquele dia a feira foi boa, havia ganho um bom dinheiro fazendo os meus carretos no mercado Central, levando as compras dos barões até as suas residências.. Passei na mercearia de um conhecido comprei uma caixa de leite Alimba e uma mamadeira e meio-quilo de ração filhote.. Um amigo arranjou umas folhas de peão roxo e vinagreira, fiz um banho caprichado. Quando joguei, o bichinho tremeu novamente e começou a se coçar desesperadamente. Fiquei com pena, com ele no colo subi a escada de madeira, preparei uma caminha no canto da sala. Mornei o leite e na mamadeira o forcei a beber, depois vomitou tudo. Dei-lhe outra mamadeira com a ração moída.
Coloquei-o na caminha,o cobrir-lhe e fiquei a observa-lo. Aos poucos foi se recuperando, comprei Escarbin para matar as sarnas,catei-lhe pacientemente as pulgas. E hoje depois de quase um mês, esta todo serelepe e me acompanha por todos os lugares. As vezes exagero na cachaça e durmo na calçada, ele fica ao meu lado deitado,mas sempre atento não deixando ninguém aproximar-se. Depois lambe-me face, fazendo-me despertar. Não é um amor.. as vezes fico lembrando de Carlitos de Chaplin e seu cão. E assim que nós somos. Qualquer barulho estranho late e adora estraçalhar umas ratazanas que ora e outra vem querer saquear os nossos parcos mantimentos.. – Bon Chien, monsieur Faim, mon bom ami. – sempre digo quando o afago e acaricio a sua felpuda cabeça..



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