apenas um estojo com lápis de cor

Data 12/11/2016 18:21:53 | Tópico: Mensagens



Esta será a ultima vez que te escrevo. Sei que eram minúsculos gatafunhos, era ainda uma menina, não sabia ler nem escrever. Acreditei em ti e ansiava a tua chegada, sempre naquela noite dita especial. Acreditava que conseguias ler qualquer sarrabisco que as palavras não tinham idade nem qualquer código linguístico, passava a noite acordada à espera que chegasses a qualquer momento com o pequeno estojo cheio de lápis de cor. De manhã nada, apenas um quadradinho de chocolate embrulhado à pressa num papel amarrotado.
Escrevi-te a primeira carta com quatro anos, sabia lá o que eram letras, dei o papel ao carteiro e ele descaradamente sorriu-me, devia ser teu cúmplice, o tratante nunca me contou a verdade. Fui iludida por todos, como era inocente. No ano seguinte a mesma coisa, outra vez o quadradinho de chocolate. Os anos foram passando, comecei a duvidar da tua boa vontade, já não havia a desculpa dos sarrabiscos, as letras eram bem legíveis. Conseguiste no mínimo o meu desprezo por achar que só acedias aos pedidos dos meninos mais abastados, culpei-me vezes sem conta por ser pobre.
Estojo nem “vê-lo”, já estava quase na terceira classe, comecei a acreditar que eras amigo do Salazar e que tinhas pedido asilo politico juntamente com o Marcelo Caetano, desculpei-te pelo facto de não poderes entrar na chaminé de lá de casa, a zona era interdita a fascistas.
O déjà vu continuava, as palavras eram como as pessoas, podiam ser tudo o que quisessem, mas a mentira e o absurdo incomodava-me. A certo momento deparo-me com a tua imagem toda sorridente num camião cheio de garrafas castanhas, cocei a cabeça, já nada fazia sentido. Afinal não tinhas fugido para o Brasil. O mistério ia crescendo, deixei de te escrever, o chocolate aumentou e o papel era original. Nunca passaste de um fanfarrão de barbas brancas criado pelo capitalismo. É muito feio enganar as crianças,era apenas um estojo com lápis de cor.

Adeus,

Conceição Bernardino

12-11-


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