Nos mares do Norte (3ª parte)

Data 11/03/2008 11:41:15 | Tópico: Contos

Toda a noite tremeu de frio. De inicio ainda tentou movimentar os braços na tentativa de não arrefecer, mas chegou à conclusão que não adiantava. Manteve-se sentado no banco do meio com a samarra e o casaco de oleado bem apertados, tapou-se com a vela, mas o frio era cortante. Por mais de uma vez pareceu-lhe ouvir barulho, sustinha a respiração, virava a cabeça na direcção de onde lhe parecia que vinha o som. Pegava no búzio e soprava, soprava até até lhe faltar o fôlego.
O barco do Raposo chapinhava a meia dúzia de braças do seu, unidos pela amarra e pelo destino. Na madrugada dos mares do norte o Chico esperava estoicamente a ajuda que os seus camaradas não lhe regateariam.
- Quando a névoa levantar vou encontrá-los. Até pode ser que aviste outro barco, um dos muitos que pescam nestas águas.
O Chico não era muito dado à Igreja, nem a rezas, mas deu por si a pensar no Senhor dos Aflitos, aquele santo que estava no nicho junto ao farol, no Portinho de Âncora.
Amanheceu com a mesma névoa pousada sobre as águas e com a visibilidade reduzida a meia dúzia de metros em redor. Abriu o baú da merenda, comeu as duas postas de peixe frito, metade do pão e um punhado de azeitonas. Rematou a refeição com uns golos de água. Agora estava arrependido de não ter trazido o termos com chá quente, como faziam muitos dos seus camaradas.
Ao cair da tarde comeu o resto da merenda e preparou-se para passar outra noite gélida. De repente levantou-se e puxou a amarra do doris do Raposo. Saltou para o outro barco e tentou levantar o cadáver sem resultado.
O Raposo não se mexeu e o Chico puxou-lhe por um braço mas articulações não funcionavam, o corpo do Raposo estava rijo, parecia de madeira. Desistiu da intenção de tirar a samarra do Raposo, que já não precisava dela e a ele fazia-lhe muita falta. Regressou à sua pequena embarcação levando consigo um bocado de oleado que o Raposo tinha dobrado sob um dos bancos. Sempre lhe daria para se embrulhar nele.
A segunda noite pareceu-lhe mais curta, tendo concluído que tinha dormido alguns bocados, o cansaço era muito. O nascer do novo dia trouxe algo de diferente. O mar tinha já alguma ondulação e corria uma brisa fraca que ao fim de algumas horas varrera o maldito nevoeiro. Em vão perscrutou o horizonte, o vazio era imenso, o silencio oprimia, nem pássaros se viam. A sua água tinha acabado e fora buscar as provisões do Raposo. Tinha de as poupar, nunca se sabia o tempo que ainda tinha de esperar.

Alguns dias depois o Chico continuava sentado no banco central do seu doris. A barba começava a cerrar-se em volta dos olhos, da boca e dos lábios gretados pelo frio e pelo ambiente salgado. Há muito que a água tinha acabado, durante a noite conseguia recolher algumas gotas no oleado, mas eram insuficientes para lhe matar a sede.
O barco do Raposo continuava a baloiçar no mar ondulante, tinha dado mais cabo de forma a afastá-lo pois o corpo do Raposo já exalava um cheiro terrível à mistura com os bacalhaus pescados que acabaram por ser devolvidos à água.
Para matar a fome, tinha pescado um bacalhau, prontamente escalado e ao qual lhe devorou os lombos. Agora rezava várias vezes por dia, ao Senhor dos Aflitos e à Senhora de Fátima, uma prece para o livrarem daquela aflição. Lembrava-se muitas vezes dos pais, lá em Âncora e dos irmãos espalhados um pouco por todo o lado. Dois deles em Lisboa, outro também no bacalhau, a irmã a servir em Viana, o mais novo andava ao mar com o pai, à sardinha e à lagosta. Já os teriam avisado pelo rádio que ele estava desaparecido? Provavelmente não, só faziam isso ao fim de uma semana.
- Há quanto tempo ando eu perdido? Quatro, cinco… não, seis dias. Seis dias? Seis dias?... Onde andará o nosso barco?
E o desânimo era cada vez maior, alternava com momentos de esperança e momentos de raiva, uma raiva contra os elementos, o nevoeiro, o mar imenso. Mas uma raiva infinita contra as miseráveis condições de vida dos pescadores do bacalhau. “Ah, se em terra fizessem ideia dos martírios da Terra Nova”, pensava enquanto procurava no horizonte um mastro ou uma chaminé.
Que saudades que tinha da “chora” do cozinheiro, quando antigamente preferia comer um bocado de pão seco ou uma batata cozida, sem mais acompanhamento. Mas a sede é que o agoniava. Fechava os olhos e via a levada do Paredão no Rio Âncora, via a água a cair em cachão e via-se a ele próprio encostado à levada a brincar com a água, a beber a água pura do rio que o viu nascer.
No sobe e desce da ondulação pareceu-lhe ver a oeste um vulto branco, uma alucinação, já não era a primeira. Julgava ver um barco mas acabava por reconhecer ser apenas espuma branca na crista da onda.
- Não, não estou a sonhar, é um barco.
Levantou-se a custo e acenou na sua direcção. A distancia era muita o mais provável era passar despercebido. Tinha de lhes chamar a atenção. Pegou no oleado do Raposo em que habitualmente se embrulhava à noite, amarrou-o ao mastro e subiu-o o mais alto que pôde. Como era amarelo podia ser visto. Durante muito tempo observou com angustia o barco que seguia imperturbável o seu rumo para, após ter perdido toda a esperança, vê-lo mudar de direcção e vir ao seu encontro, depois de um largo rodeio.
O Chico caiu de joelhos a chorar, um chorar convulsivo, sem lágrimas, que lhe tirava o fôlego. Quando se levantou apreciou o barco próximo, um vapor de carga que arreou um escaler onde tomaram lugar meia dúzia de marinheiros, remos empunhados, remadas decididas levaram a embarcação ao encontro dos pequenos doris. Falaram-lhe numa língua estranha, não percebeu nada.
- Água, por favor – pediu com a voz num sopro.
Um marinheiro prendeu o doris com o croque e outro saltou a bordo. Voltou a dizer-lhe algo e apontou para o outro doris e para o vulto do Raposo.
- Morreu, era bom homem. Dê-me água…
O marinheiro agarrou o cabo lhe os seus companheiros lhe lançaram e em breve fizeram-no subir a bordo do vapor onde bebeu com avidez longos golos de água, até lhe arrancarem a garrafa das mãos.
O barco vinha de Boston e ia para Galway, na costa da Irlanda e fôra encontrado a mais de trezentas milhas a sul do pesqueiro. No mesmo dia fizeram o funeral ao Raposo, lançaram-no ao mar com toda as exéquias, já que o vapor não tinha condições para manter mais tempo o cadáver a bordo e a viagem ainda ia durar mais alguns dias.
Pela rádio avisaram o Comando Naval do acontecimento e quando atracaram, o Chico tinha à sua espera um representante consular de Portugal. Depois de vários dias à espera para lhe tratarem dos papéis, tomou num cargueiro que o desembarcou em Lisboa, uma semana depois.
No fatídico dia do nevoeiro desapareceram mais dois doris, alem do seu e do Raposo. Esses nunca mais apareceram.
Regressou a Âncora de comboio, descansou uns dias, meteu no saco alguma roupa e passou a salto, primeiro para Espanha, depois para França, onde começou a trabalhar nas obras.
Cinquenta anos depois, já reformado, mantêm-se fiel à promessa de nunca mais desafiar o mar.


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