Kafka e o seu mestre

Data 16/02/2017 17:42:15 | Tópico: Crónicas

Finalmente, ontem percebi a analogia Saramago/Kafka, após terminar de ler o livro "O processo". Parece que Saramago aprendeu uma ou duas coisas com o senhor da república checa, e isso tornou-se para mim evidente após o primeiro livro que li de Kafka. Quanto a Saramago, sou um bom leitor. Não ávido, mas já li cinco dos seus livros para me inteirar do seu estilo e perceber a sua dinâmica narrativa. Quanto a Kafka, é-me praticamente desconhecido, e é engraçado que tenho o livro "Metamorfose" guardado há uns anos, e comecei a lê-lo várias vezes sem nunca conseguir terminá-lo. Há algo de estranho naquela história... Sinto que todo o ambiente cria em mim sentimentos de repulsa, que gradualmente se transformam em tédio, e não sou capaz de terminar. A história conheço-a, pelo menos os seus pontos principais, e por isso me despertou a atenção, mas ao lê-lo parece que sinto a atmosfera sufocante que o personagem deve ter sentido (que, aliás, acho que é coisa recorrente nas suas obras), e, no meio do absurdo catalisador do resto do relato, existe uma realidade caótica e transversal, que, devidamente analisada, se poderia transpor para as malhas do plausível e ensinar-nos alguma coisa.

Este é, quanto a mim, o ponto análogo entre Kafka/Saramago. Utilizar como catalisador algo absurdo e transformá-lo numa coisa plausível e susceptível de levar ao leitor uma mensagem, mais ou menos codificada. "O caos é uma ordem por decifrar", num romance em que aparentemente um homem descobre outro totalmente igual a si. "Se podes olhar vê. Se podes ver repara.", num romance onde o mundo é, aparentemente, assolado por uma epidemia de cegueira. "Conheces o nome que te deram. Não conheces o nome que tens.", num romance em que o personagem principal tem a obsessão de coleccionar identidades. Nestes mundos muito próprios Saramago criou como que um reflexo grotesco da nossa vida.

O título pode ser estranho. É. Porque é absurdo. Mas quer dizer que, julgo eu, se Kakfa tivesse tido tempo, poderia ter também criado o legado que Saramago deixou, tão vasto e intemporal. Como infelizmente não teve, terá como seu mestre o homem Português que elevou um pouco mais a literatura do seu país, onde quer que estejam. Talvez, na utopia que cada um almejava, que, pelo visto, descobri serem parecidas.

Paulo Coutinho


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