Dúvida

Data 12/03/2008 05:09:02 | Tópico: Contos

Andava inquieto há tempos... A mulher reclamava de não ouvir um pio sequer de sua boca.
Praguejava surdos protestos à gritaria dos filhos, barrigudinhos pelados que pulavam pelo terreiro.
Quase não comia. Deixava que a comida ensebasse no prato, com olhos fixos no fio mal torcido da lâmpada cheia de bosta de mosca.
Indagado sobre o fato, retorcia-se, afinava a voz, e mastigava grunhidos que ninguém conseguia entender.
Cedo, levantava arrastando a noite desdormida nos chinelos, e não tirava a camiseta vincada que nem bucho de vaca, nem a calça de moleton chinfrim que em estranhas bolsas marcava os joelhos e a bunda.
Pelas trincas do sabonete, há dias que não via o que era água de banho.
Olheiras amortalhadas, assim ia o infeliz queimando as horas como cigarros. Foram-se 4 dias!
No quinto, acordou bem cedo, e recendendo a sabonete, penteou os cabelos úmidos, abotoou a camisa até o grugumilho, ferrou o cinto bem alto, deixando uma estranha divisão entre as pernas das calças curtas.
Atolou o chapéu na cabeça, desviou-se da galinhada, pegou o burro magriço, jogou por cima dele a reata onde escondeu a “pica-pau” e foi para Capetuba.
Chegou a farmácia "Boticadada", encostou-se ao batente da porta, meneou a cabeça, para o homem de guarda-pó encardido e cotovelos no balcão, único vivente ali dentro.
Então em voz clara, olhando firme o farmacêutico, apontou com a cabeça, para a escada que subia até o quarto à guisa de residência.
_ Vamo intão!?
Foi.
E se acabou em gozos até a boca da noite.



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