A Confissão de Narcisa

Data 19/05/2017 23:16:16 | Tópico: Textos

A Confissão de Narcisa

Escrevo no lusco-fusco do meu quarto, forrado de gravuras de Gustav Klimt e cartazes de Marlene Dietrich; ela me observa com seu olhar lânguido e altivo enquanto rabisco a folha branca em que se refletem os raios de sol, filtrados apenas pelas frestas das persianas. Lá fora um grilo grita a sua despreocupação e tudo é calmo, ameno dentro dessa casa. Parece que tudo está fechado e protegido por uma redoma de vidro finíssimo e o calor torna os movimentos ainda mais pesados; mas não há calma dentro de mim. É como se um rato estivesse roendo a minha alma, e de uma maneira tão imperceptível que até parece suave.

Não estou mal e também não estou bem, a coisa preocupante é que "não estou". Mas sei me reencontrar: Basta levantar os olhos, e cruzá-los com o olhar refletido no espelho para que uma calma e uma felicidade tranquila tomem conta de mim. Diante do espelho, eu me admiro, extasiada com as formas que vão pouco a pouco se delineando, com os músculos que ganham um contorno modelado e inseguro, com os seios que começam a mudar de forma sob a camiseta e se movem suavemente a cada passo.

Não quero de jeito nenhum destruir esse mundo resguardado que construí para mim: é um mundo só meu, cujos únicos habitantes são o meu corpo e o espelho e aqueles que permito, os que desejo que aqui comigo estejam. A única coisa que realmente me faz ficar bem é aquela imagem que contemplo e amo: todo o resto é ficção. Mas minha alma não é falsa, nem nascida do acaso, tão pouco crescida na mediocridade, ela é intensa. Não foram falsos os beijos que timidamente dei em alguns meninos da minha escola.

Não é falsa essa casa, ela é parecida com o estado de espírito que tenho agora. Queria que de repente todos os quadros saltassem das paredes, que pelas janelas entrasse um ar acalorado, que miados de gatos tomassem o lugar dos cantos dos grilos. Lembro-me de um tempo o qual era tão fácil amar, mas como eu costumava ser, você nem lembra mais, e meu coração está preso em suas mãos, sem fingir.

Quero amor, diário. Quero sentir meu coração se derreter e quero ver as estalactites do meu gelo se quebrando e afundando no rio da paixão, da beleza.


Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=323748