Ontem, fiz a dança-da-chuva

Data 30/07/2017 11:15:38 | Tópico: Crónicas

Sou o bruxo da minha tribo.
Todas as manhãs, antes do cantar do galo, num escuro cedo, caminho pelas matas minhas e dos vizinhos.
Num castro mais velho que os mais velhos, guardo as pinhas vomitadas pelo saco de juta.

Sou descendente de lobos, e quando me dá para me defender, ou aos meus (face em que carinhosamente me auto-intitulo cão-de-guarda), é à minha ascendência que devem temer.

Na minha busca da explicação para fenómenos estúpidos, tenho o cuidado de contrariar a minha natureza e ir a um de cada vez. Se me deixarem, faço tudo ao mesmo tempo, como polvo tresloucado. E mal.
Em dias bons, faço o trabalho de meia-dúzia de seis homens, com o dobro do meu tamanho, com cinco vezes mais eficiência. A mesma eficácia.
Nessas ocasiões, não esperem sorrisos ou, por outro lado, esperem que me relacione convosco como nunca ninguém o fez, resolva os vossos problemas, além de todos os outros do resto da tribo.
Pena a falta de consistência.
A existir, estaríamos a falar de alguém sobre-humano, um Cristiano Ronaldo dos bruxos do Norte.
O que não sou.

Sobre o estranho facto de não ter chovido nas últimas estações, deu-me para por-me à conversa com "o velho que sabia ler as nuvens" para ele me dar o seu parecer.
Não tenho o dom da omnisciência, por isso, peço o parecer de especialistas, como é o caso do velho da aldeia.
Ele retorquiu num gaguejar rouco e imperceptível, que elas andaram de pernas para o ar. As nuvens. E que o vento forte, Bóreas, que arrastou as labaredas, as afastou para o "lago maior".
O ar em movimento anda mesmo filha-da-puta, carai.
E eu, com esta sede, que me chama os uivos.
O Verão a Agostar, e oiço rumores de que, das outras tribos, não se quer que a bebamos.
Há um estado qualquer que o diz.
Um estado de "pouca graça".
Mas, se ela não cai?!.
Passadas duas semanas, num estado (lá está ele) de semi-transe provocado por uma insónia de três dias pela secura, senti no joelho esquerdo uma alteração física, um tipo de dor singular que me acontece quando o tempo muda.
Fui falar com "o velho que sabia ler as nuvens" e encontrei-lhe um sorriso mudo.

Fiz as rezas ao sol, meu protector das sementeiras e das recolheitas.
Fiz a ladaínha às barragens, ao deus rio Douro, ao menor Tua, às linhas de água, aos poços, por ora secos.

Ontem, fiz a dança-da-chuva.



Aos interessados, podem ler acerca do meu acessor em assuntos de metereologia, pelo que o anormal do meu primo escreveu.
Acho que o conhece da minha aldeia. Como a mim.
Não me apetece copiar o URL mas o título é mesmo:
"O velho que sabia ler as nuvens"
(falta de originalidade...)



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