
Uma didática da invenção (Manoel de Barros)
Data 03/02/2018 12:38:48 | Tópico: Poemas -> Fantasia
|  I Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc. etc. etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
II Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.
III Repetir repetir — até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo.
IV No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias. É quando Ao lado de um pardal o dia dorme antes. Quando o homem faz sua primeira lagartixa. É quando um trevo assume a noite E um sapo engole as auroras.
V Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.
VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.
VII No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos — O verbo tem que pegar delírio.
VIII Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.
IX Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz . Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X Não tem altura o silêncio das pedras.
Manoel de Barros (1916-2014), um dos mais aclamados poetas contemporâneos brasileiros. Nascido em Cuiabá em 1916, estreou em 1937 com o livro “Poemas Concebidos sem Pecado”. Sua obra mais conhecida é o “Livro sobre Nada”, publicado em 1996.
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