Há trinta anos atrás?

Data 12/03/2018 15:42:30 | Tópico: Crónicas

Há um corvo-marinho fora de água que ao invés de estar - como costuma estar - empoleirado de vigia numa bóia (ou numa pedra), está na rampa dos barcos. E ainda por cima de asas abertas. Estranho. Asas que pela cor e pelo formato (recortado) fazem lembrar a capa do Batman. Mas, acreditem, o animal mostrou realmente a coragem de um super-herói: afinal, aguentou inabalável a minha suave aproximação. Só deu de frosques no último metro. Estranho. Pois é, parece que o corvo-marinho já vai estando mais à vontade a meio da estação do ano que o trouxe para cá. Já é mais abundante e já não anda tão sozinho. Ele sabe agora que os perigos desta zona não são assim tão perigosos. Então facilita.

Olhem, lá está outro a boiar. De corpo negro e com aquele pescoço comprido que termina nas faces brancas (ou amareladas), faz lembrar um periscópio à espreita. Sim, já sondou exaustivamente as imediações. Daí que não seja incomum vê-lo confiante junto às margens e, por vezes, a fazer parelha (ou a competir) com a garça. Costuma andar a atrás do peixe que se barrica nos buracos do entulho. Todavia, outras ocasiões há em que apenas se consegue ouvir a agitação do seu mergulho. E se virarmos a cabeça, eis que um submarino avícola persegue um torpedo piscícola. Passo a explicar: o nosso Batman, nestas ocasiões, cola a capa ao corpo, metamorfoseia-se numa seta e nada a alta velocidade. Objectivo: capturar o alimento, ou melhor, o inimigo-de-escamas.

E por falar em inimigos e em submarinos, aqui o inimigo (como quem diz), pelo modo como andam riscados os alicerces da ponte-velha (dos carros), também anda a mostrar-os-dentes. "Rússia" é o que está escrito a vermelho nas paredes dos pilares do tabuleiro (e em tom de assinatura de um gangue rasca). Porém, ainda que os submarinos da ex-URSS tenham voltado a patrulhar o Atlântico-Norte, não me parece que os marinheiros das profundezas tenham predisposição para vandalismos pseudo-artísticos. E uma imitação "arrusalhada" da ousadia que o submarino nipónico teve ao tentar invadir a Califórnia - isto, claro, na hilariante comédia de há trinta anos atrás "1941 - Ano Louco em Hollywood" - é completamente absurda. Além disso, as águas pouco profundas de um estuário não comportariam a envergadura de tal embarcação submersa. Aquilo deve ser coisa de miudagem oriunda das terras de Staline. E, quiçá, de segunda geração; afinal, a primeira vaga migratória da Europa de Leste (para Portugal) já foi há mais de uma década. O pior é que para quem viu o "Amanhecer Violento" (há trinta anos atrás) a coisa não é tão simples de processar. É que o bloco Ocidental, durante a Primeira Grande Guerra Fria, interiorizou vincadamente a propaganda Norte-Americana. Resultado: para quem cresceu nos anos oitenta, existe - algures perdido no subconsciente - a aterradora imagem de que numa bela manhã acordaremos com o céu recheado de pára-quedistas soviéticos (ou chineses, ou cubanos...).

De qualquer modo, antes a Invasão do que o Dia Seguinte à Destruição - pensamos. Lá está: o cenário pós-apocalíptico para quem viu o "Day After" (há trinta anos atrás) permanece em carne-viva gravado na memória. No entanto, o que alimentou a tensão Leste-Oeste por mais de quarenta anos (bem como a paz-podre) foi precisamente o medo da explosão-em-forma-de-cogumelo. Pelo menos, até o anúncio do Programa Militar Guerra-das-Estrelas (não o de George Lucas; o de Reagan), e até à queda do Muro-de-Berlim. Veio então o "Glasnost" e a "Perestroika" e suspiramos de alívio; até que a Rússia ressurgiu das cinzas. Agora, em plena Segunda Grande Guerra Fria, por não acreditarmos ser possível repetir tamanha loucura, andamos entretidos a rir das cabeleiras do Trump e de Kim Jong-un. Junte-se a isto uns pozinhos do "Pensamento de Xi Jinping" e mais os cinco filhos por casal pedidos por Erdogan à diáspora turca, e temos uma poção efervescente a borbulhar por todos os lados.

Então pensamos: estaremos a retroceder no tempo? Porque senão veja-se: em "War Games (há trinta anos atrás), e sem "World Wide Web", ficcionava-se que um miúdo com um computador pudesse brincar seriamente às guerras, e ao ponto de quase provocar uma terceira grande guerra mundial; mas só hoje é que temos Internet para todos, e a ingerência Russa, e as "fake news"... Mais: em "Two minutes for midnight", os Iron Maiden (há trinta anos atrás) cantavam (ou contavam) os minutos para o fim do mundo; mas só hoje é que os cientistas adiantaram o relógio-do-apocalipse mais trinta segundos. Estranho.

Enfim, não se trata de fazer a cantilena do mau-agouro. E ainda que os corvos tenham metido o bedelho, não há aqui a mínima pitada de superstição. Até porque os corvos desta história são marinhos e, provavelmente, menos inteligentes do que os seus primos terrestres; e além disso fazem lembrar o Batman, que é bonzinho. Muito embora, verdade seja dita, persistência e técnica não lhes falte. Prova disso foi o estardalhaço que ouvi quando as gaivotas quiseram roubar a pescaria de um deles, e não conseguiram. "É uma dourada" - disse um homem de bicicleta que como eu presenciou o espectáculo. E de seguida, e para tristeza dos salteadores, a dourada escorregou rapidamente para o bucho do pescador-de-asas. É um lutador (este pescador). E por falar em luta: serão estes corvos-marinhos também os mesmos de há trinta anos atrás? Não serão certamente os mesmos exemplares; mas talvez seja mesma espécie - sem evoluções ou regressões. E, esperemos, sem mutações trazidas pela radiação das centrais nucleares que explodem.


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