Por que amo essa mulher.

Data 05/05/2018 21:29:04 | Tópico: Prosas Poéticas


À amiga
Jmattos
consagro






Porque ao vagar pela Paulista, quase à altura da Augusta,
a vi esconder o rosto atrás do leque e me fitar por entre os
repetidos movimentos no mesmo instante em que eu pressentia
uma canção romântica, inaudita, talvez "Aline", e senti-me
numa daquelas ruas chiques de Manhattan que Paulo Francis
decantava em prosa e verso. Levei comigo seu olhar penetrante
duma virgem dentro dum cubículo de vidro transparente
que se insinuava só pra mim no borborinho duma calçada
de Amsterdam, a Veneza do Norte.
Porque levei comigo a rara fantasia difícil de dissipar-se como
o nevoeiro londrino em que, andando ao acaso, de repente,
se esbarra numa mulher, convida-a para um café com chantilly,
e descobre que ela, além de simpática, é leitora de Poe,
Pessoa, Mario Quintana, Camus, etc., e chora quando
ouve "As rosas não falam", de Cartola. Aí ela diz adeus,
chama um táxi que se perde na distância da avenida com
a cabeça virada como se quisesse dizer algo mais com
o mesmo olhar, talvez, de um fragmento esperançoso,
entorpecedor desde quando passei à sua frente.

Por que amo essa mulher enigmática, magnética e ultra-sensorial
que, numa plataforma dum cais de Lisboa, num ato impulsivo
e frenético, descalçaria seus sapatos de salto agulha e mergulharia
no mar pra alcançar a embarcação na qual eu me encontrasse
sem perder o lenço branco, amassado em sua cerrada destra,
só pra dar-me o último aceno até que eu dormisse o sono
profundo... mas que, num último ato de sobrevida, eu, muito louco,
saísse do quarto com a história de "Romeu e Julieta" ao revés, debaixo
do braço, e fitasse, pela claraboia, nos meus ângulos de visão
possíveis, todos os astros... e...nesse epílogo vital, eu não
me permitisse deixar de sonhar pra encontrá-la às gargalhadas,
mostrando-me o céu, o céu de sua boca, o céu duma aeronave
em voo constante que jamais pousasse...

Por que amo essa mulher que, num olhar, leva-me a tantos lugares
de luares cândidos sobre paraísos mutantes, extravagantes,
de choros proibidos... Por que fui me distanciando no vaivém da rua
com o olhar retro ao visgo que me prendeu por não vê-la estranha...
Por que, num instante, me apaixonei sem nem ao menos escutar
sua voz... Porque, talvez, meu amor resida numa ilha inacessível,
defronte ao meu olhar...e a vida toda senti-me preso, desencorajado
para abordá-la...

Por que amo essa mulher até o deslimite do que penso em lhe
oferecer desde agora... até estarmos numa varanda contemplando
o vazio e, já velhinhos, ela iniciar a conversa com a seguinte frase:
"Porque ao vagar pela Paulista, quase na altura da Augusta, vi você,
ali, acompanhando-me com os olhos...eu me abanando
despreocupada e tão carente... e, num segundo, meus horizontes
abriram-se quando meu olhar e meu pensamento ficaram contigo..."



*****
"quando a gente não diz o que sente,
o outro vai embora sem saber
que tinha um motivo pra ficar."
(1980)

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