A Bia dos trapos

Data 31/05/2018 21:07:55 | Tópico: Prosas Poéticas


Ela era a louca da terra. Chamavam-lhe a “Bia dos trapos”, mas ninguém a conhecia realmente, nem sabia ao certo a sua idade, tal era o constrangimento de a olhar de frente. Desde cedo, cartografara as ruas da vila. A pé. Os sapatos castanhos e gastos, quase sem solas. Não aceitava a ajuda do vizinho sapateiro. Ele dizia que não lhe cobrava nada para os consertar, mas ela via sempre uma intenção escondida. Pensava “quando a esmola é muita…”e continuava, noite e dia, nas suas andanças. O nome que lhe davam devia-se à quantidade de roupa que vestia, geralmente desencontrada. Usava meias às riscas nas pernas magérrimas. Cobria o corpo delgado com um vestido de linho branco, enfeitado de meias-luas pretas, e sobre este, uma “combinação” azul-turquesa. Ao pescoço, enrolava um cachecol com flores garridas, embora as temperaturas chegassem aos quarenta graus na rua. Um avental com losangos vermelhos e rosa completava a indumentária. Dos cabelos, viam-se fiapos, por baixo do gorro branco encardido. Trazia no rosto a pele curtida pelo sol e pelo vento, olhos miudinhos como azeitonas negras e lustrosas, um nariz de beterraba, grosso e vermelho, uns lábios finos e a língua sempre afiada para escandalizar o povo, quando alguém a abordava. Não gostava de conversar, não se detinha com as ladainhas das velhas da terra. Não admitia diálogos com as crianças, sobretudo porque corriam atrás dela gritando “Bia dos trapos, onde vais? Cuidado não tropeces, ou ainda cais!” Num acesso de fúria, corria-lhes no encalço, de cajado na mão. Não porque tivesse dificuldades em andar, mas para os “zurzir”, acaso apanhasse algum. Sorte a deles, serem mais rápidos. Percorria léguas durante os dias. Catava ramos de árvores partidos pelas estradas, pedaços de tecidos rasgados, latas de refrigerantes vazias…Tudo lhe servia para carregar às costas. Por vezes, atava o espólio com cordas e passava pelas ruas numa enorme azáfama. O suor a escorrer-lhe pelas têmporas e a magreza reclamando um pouco de paz. Nunca se soube bem de que se alimentava. Provavelmente de algum naco de pão, ou de outros restos de comida retirados do lixo. As pessoas habituaram-se à sua presença, mas o receio das suas reações. mantinha-os afastados. Deixou de aparecer nas ruas durante uns dias. Os homens da GNR foram bater-lhe à porta. Ninguém respondeu. Forçaram a entrada. Encontraram a Bia caída, morta, sobre os trapos que recolhera toda uma vida. Os sapatos arrumados atrás da porta. O cheiro fétido envolvia todas as divisões e o lixo acumulado demorou dias a ser extraído da casa. O corpo da Bia nem foi velado. Enterraram-na no cemitério por ordem da Junta de Freguesia, numa vala qualquer. Perdeu-se o nome e o rasto. Nem placa de saudade. Nem “Aqui jaz uma mulher”. Ficou-me na lembrança a “Bia dos trapos”. Apenas na memória algumas histórias continuam a viver.
Nininha
16/05/2018



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