ODISSEIA DE UM SOBREVIVENTE

Data 09/07/2018 23:57:16 | Tópico: Poemas



Não fui tão monstro como supôs a memória
ebriada de rancor.
Não morri das espadas como minha consciência
insistia em construir meu caixão de remorsos.
Mas jamais fui herói.
Fui sempre pintado com a cor das tintas transparentes
e sendo assim,
ninguém jamais pensou no caos vivo que corria dentro de mim.
Nem no pânico e terror das minhas emoções de bambu
que rangiam ao vento.

Deslizei, não sei como, por caminhos pouco comuns
tais como encanamentos de pias, bueiros, porões & tetos.
Tiro a camisa e torço o sangue das trilhas sem glória.
Não repetirei quantas vezes morri de fome e de sede.
Quantas vezes minhas mãos nada tinham a afagar.
Não falarei da neblina de tédio que cobria a minha cidade.

Lembrarei apenas do menino que nasceu puro amando
o colorido das manhãs azuis...
Do menino que não disse palavra e viveu
o eterno verão de um pônei selvagem.

Vim a nascer depois um cacto calado e paciente na espera do amor.
Crescia em mim a natureza da solidão
dando liberdade para que ocupassem o meu corpo
todo o mato, galhos & cipós.
Eles não faziam mal algum, nem incomodavam o coração
que já estava igual a uma velha casa fechada e abandonada
no meio das jabuticabeiras.

Moisés seguia pelo deserto guiado por uma nuvem
e nós, na condição de mendigos
apenas abríamos as bocas de misericórdia
quando chovia o milagre.
Eu amava a moça que perseguia os mistérios da Lua.
As estrelas se alegravam em nós
no alto dos montes.
Os ufos nos cumprimentavam à distância.

Mas ainda sinto pelas noites perdidas no mofo
em que meu corpo era como um armário velho e envergado
e meu cérebro funcionava como uma maquininha burocrática.
Bichinho social?! Me esqueci das essências:
- Que navegar no mar do peito, é muito mais necessário.
- Que navegar nos teus olhos é muito mais necessário.
- Que amar é muito mais que necessário!...

Ainda me inspiro às margens do Verde.
Ainda construo polígonos de estrelas às margens do Verde
e vejo a canoa deslizar.
Ainda faço guerra às margens do Verde.
Minha aldeia é tolhida e mesquinha como eu mesmo.
Mas a minha certeza no céu é bem maior.
E além do mais,
sempre terei que me ajoelhar diante do Princípio.



Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=337512