Flor à beira do pântano

Data 21/07/2018 17:35:05 | Tópico: Crónicas

Flor à beira do pântano é o nome de um filme que me ficou na cabeça, e eu nem sei muito bem porquê. Sei que na altura devia ter uns 10-12 anos e simplesmente gostei do título. Fiquei entusiasmado - lembro-me bem - com a apresentação que passou na televisão durante pelo menos 1 semana (como era hábito). E ainda por cima o elenco contava com actores de renome internacional, como o Charles Brownson - que foi um dos meus actores de acção preferidos. Porém, no dia da emissão a desilusão foi estonteante. Não consegui sequer - tal foi o tédio sentido - terminar de ver os 110 minutos da longa-metragem. Além disso, o Charles Brownson encarnava um personagem deplorável e tinha um papel ultra-secundário (quase insignificante). Depois, não havia tiros, não havia guerra, não era um Western... Em suma, não preenchia os meus requisitos (infanto-juvenis) para um bom filme. No entanto, o que é real é que o título ficou-me incrustado na memória e perdurou durante todos estes anos; na época somente por ser diferente, enigmático e talvez comprido; hoje somente porque suscita devaneios e outras interpretações dignas (para mim) de um pensamento mais absurdo.

O letreiro "Flor à beira do pântano" é sem dúvida de inspiração Yin & Yang: flor o feminino e pântano o masculino. É uma dualidade ligada pela proximidade perigosa e adjacente, que se completa. É estar à beira do precipício a contemplar a escuridão, mas seguro e preso a uma corda (ou a um caule) para não escorregar e cair. É ser o monstro e a beldade que se olham nos olhos apaixonadamente sem pestanejar, mas que pecam por falta de toque e atrevimento. É a mistura do cheiro afável do polén com o cheiro cruel da decomposição borbulhante. É uma forma de florir sem chuva, ainda que a ameaça do alagamento tenha funções de rega sincronizada pelo pulsar da pele dos batráquios. É a predisposição de estar no lugar errado constantemente, ainda que bem encaixado na biodinâmica de um ambiente à parte (e sagrado). É ter uma vontade inimaginável de sair vivo da superfície, mas sem descolar a mão presa às raízes que afloram do fundo-morto. Na pior das hipóteses é ter todo o movimento na areia-movediça, mas com os olhos fixos no céu e sem afogamento possível que mude as precauções futuras. Na melhor das hipóteses é ter sido transformado num réptil predador que, volta-e-meia, é um tronco flutuante transportador de insectos (sem asas) para outras margens. Resumindo, são mundos opostos no mesmo mundo, mas condizentes e complementares na arquitectura de um quadro surrealista.

Posto isto, resolvi rever (ou melhor, ver do princípio ao fim) o roteiro escrito por Francis Ford Coppola, filmado há precisamente 50 anos atrás. E qual não foi o meu espanto ao descobrir que o título original do filme diz que "esta propriedade está condenada". Ora, para quem não viu este enfadonho dramalhão - e descansem que não vou fazer (grandes) sinopses -, trata-se de uma metáfora: está, portanto, condenada a Alva (a sexy Natalie Wood), que parece ser propriedade de todos; e está condenada a pensão da mãe de Alva, que devido aos despedimentos na ferrovia local acaba por perder a clientela. Contudo, entende-se que "Flor à beira do pântano" seja uma tradução credível e bastante criativa para português: onde a flor é a sonhadora e rebelde Alva; e o pântano é a prisão que ela sente, não só provocada pela pressão dominadora da mãe, como também pelo facto de viver numa cidade pequena e sem perspectivas.

Existem, deste modo, dois títulos atribuídos e coerentes com o enredo da película; todavia, bastante antagónicos entre si. Isto é, passamos de uma atmosfera filosófica para um mundano e desequilibrado sentimento de monopólio. E neste aspecto - e divagando - o conceito de propriedade (privada e condenada) é algo que ainda incomoda muitos pensadores. E não é de certeza o tipo de incómodo que incomoda (incoerentemente) algumas ideologias políticas. Note-se, pois, que são sempre estas mesmas ideologias transvestidas que na prática não prescindem dos latifúndios (onde se movimentam) e dos luxos que ostentam humildemente. Ou seja, assistimos a lutas por causas que não são queridas e muito menos cumpridas, mas que se utilizam de chavões de igualdade para justificar o discurso gasto: "se eu tenho tu também podes ter". Aberrante, não? Tudo isto, aliás, faz lembrar o peixe-papagaio que pasta nas pastagens de pedra do mar: ele digere a carne dos pólipos dos corais e defeca uma chuva de areia. Exactamente como fazem as fraudes sócio-politicas: apropriam-se das duras verdades, trituram cada pedacinho, rejeitam aquilo que nada lhes dá e ainda modelam com as fezes a paisagem circundante. Elaboradas conveniências, diga-se.

Enfim, se por um lado o arquétipo "flor-à-beira-do-pântano" é uma condenação suportável que permite a experimentação dos extremos, onde algures a meio, entre a letargia e a euforia, existe a paz de uma catarse; por outro lado, o arquétipo "esta-propriedade-está-condenada" remete-nos - unicamente - para a escuridão total de um beco-sem-saída. Na mente humana a concepção de que a propriedade é um bem-comum dificilmente vinga. Logo, não pode haver um controlo colectivo e uma concessão de áreas produtivas, habitacionais e até emotivas; principalmente quando moralizamos até à ponta dos cabelos o pensamento basilar de que: "o que é meu é meu".

No íntimo, sabemos que não somos donos da terra onde pisamos (nem de qualquer espécie de matéria). É um facto. Muito embora, o pragmatismo da sobrevivência nos faça crer que sim (que somos). Daquilo que indiscutivelmente somos proprietários é do espaço intelectual que transportamos algures dentro da caixa craniana. E este espaço, ao contrário do espaço físico, é que está condenado à Tragédia-dos-Comuns; na medida em que, ou endoparasitas do medo povoam a nossa capacidade de actuar e digladiam-se pelo discernimento; ou então, as ideias dos outros colonizam a nossa imaginação. E o bizarro é que - neste âmbito - tanto a subjectividade da harmonia de uma flor à beira do pântano, como a objectividade do egoísmo de uma propriedade condenada, não explicam quem gere - a determinado momento - o espaço em que habitamos (quer seja ele físico ou intelectual). Ficamos por isso eternamente condenados ao mesmo: entre o Bem e Mal, e na posse de rigorosamente nada.


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