Não me beijes assim

Data 28/07/2018 18:01:24 | Tópico: Poemas

Não me beijes assim

- Por favor, não me beijes assim, com esse cheiro a naftalina. Estiveste muito tempo fechada no roupeiro, vestida com o meu vestido de seda pura, que nunca usei.

- Pelo menos impeço-o de ser comido pelas traças. A ver pelo tempo ali esquecido. Transformei o teu roupeiro numa festa de gala.

- Gosto de vestidos compridos e transparentes. Mas só os visto nas noites em que não durmo. Esta noite dormi e sonhei com um beijo tímido, de alguém que julguei conhecer...mas esqueci…

- Já sei. Procuras na noite um refúgio e fazes dela a tua absolvição.

- Não é isso. Acho que sou sonâmbula no intervalo das insónias. A noite fala comigo, dita-me coisas, que eu às vezes preciso esquecer. Como, por exemplo, diz-me quando vens, para me impedires de sonhar.

- Então deve ser por isso que falas sozinha e pensas que sou eu. Olha que muitas das vezes eu só fico queda e muda. Preciso ouvir rumores aí dentro da tua consciência.

- Mas a noite não me pesa e nem eu sou um peso na noite. A não ser quando me trais com algum sonho a preto e branco. Às vezes és mesmo um pesadelo na minha noite. Há dias que mais vale esquecer que existes.

- Pois, a luz nem sempre permite que vejas claro. A luz também ofusca. E a noite não tem a noção do peso da consciência que recai sobre si quando não se dorme. Pesa-te antes de te deitares e podes também dormir sem almofada. É um bem para a coluna.

- O dia procura-me como se eu fosse mel, mas eu gosto mais de cerejas a enfeitar as orelhas. E gosto da claridade do meu rio. Ali não há enganos possíveis. Água pura pelo corpo todo.

- Não te iludas e não permitas que as correntes nocturnas te baralhem os sentidos mais reais. Então não sabes que esse rio, além de poético, tem correntes enganadoras. É preciso cuidado, com os seus rápidos.

- Não importa. Eu conheço as outras correntes macias, onde a lua se banha antes de eu chegar.

- Cuidado com as fases da lua. Nem sempre mostram a verdadeira face. Principalmente aos desalmados, quando acorrentados às correntes fundas.

- Desalmada és tu que te insinuas, julgando-te dona das minhas insónias, vestida com um vestido novinho que eu nunca usei…

O trabalho de Epifania, foi agora editado em livro: ESPELHO
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