AS APARÊNCIAS ENGANAM
Data 24/08/2018 17:05:04 | Tópico: Crónicas
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Cidade do interior. Rua principal de terra, estradão. Casas, umas de tijolos; outras de madeira muito comuns aqui no estado do Paraná por conta da imigração japonesa no começo do século XX.
No final do estradão lá estava ele. Um sujeito esquisito, branco, quase transparente, bigode e cabeleira brancos, fartos; camisa enxadrezada e aquela maldita calça de suspensórios, Quase ou era seu uniforme, já que nunca trocava de roupa. Se se colocasse as mesmas em pé ficariam eretas, pois, em dias de vento e sol, o poeirão vermelho destas plagas pintava tudo. Final de tarde. Saiu e entrou várias vezes mirando o céu, já que nuvens negras escondiam o resto de luz. Resolveu. Precisava comprar um penico.
Lá vem ele, o cabeça branca, cara de Einstein. Braço totalmente engessado em posição semi-vertical (única possível). Um curativo 3M no nariz (espinhas?), braço direito em posição natural. Assobiava, de vez em quando, em intervalos de 30 segundos mais ou menos. Rodopiava a mão direita como se estivesse regendo uma orquestra.
Chegou à venda. E, num falar gestual, comprou o penico. Por quê? Porque seu banheiro era fora, de fossa, e ultimamente sua desenteria era fulminante. Não podia sequer peidar sossegado. Era pin! e no pum!... tava cagado! Aproveitou também e comprou uma dúzia de ovos, embrulhados em papel de pão (gramatura 53g).
Eis que aquelas nuvens negras desabam em chuva torrencial. Esperou diminuir. Saiu da venda e pôs-se de volta. Ele podia esperar a chuva passar, e daí? - mas havia deixado o feijão cozinhando. Precisava voltar. Sua casa ficava o quê?, uns 250 metros dali.
Com o braço esquerdo engessado em posição semi-vertical, nem sequer os dedos podia mexer, tinha que levar os ovos e o penico. Seria fácil. Seria. Mas o cara de Einstein não podia tomar chuva. Tinha uma sinusite crônica, incurável e nem ao sereno podia se expor que sua cabeça ficaria a ponto de explodir.
O que ele fez:
Só podia usar uma das mãos. Colocou os ovos dentro do penico bem calmamente e o penico na cabeça, como um chapéu. Com o braço esquerdo (do gesso), num esforço sobre-humano, mantinha o grande penico inclinado para trás para ter ângulo de visão. Seu braço direito mantinha-se em posição diagonal como se estivesse cumprimentando alguém, estático. E vinha, desviando-se das poças d'água barrentas, deixando suas marcas em relevo que iam se desfazendo com as gotas de chuva. Os passantes, a 30/40 metros, miravam a cena. Uns riam em dueto; outros, abaixavam os olhos rindo por dentro: -- Que figura essa! Um desconhecido, sombrio, novato por estas bandas, com suas roupas estranhas para os padrões atuais. -- Parece até que não toma banho. Nem cachorro chega perto dele. Ai, Deus me livre! -- Que modo de andar mais ridículo. -- Patético, há-há-há!"
Chegou à sua casa. Com muito jeito, desligou o fogo do fogão. Inclinou a cabeça e cautelosamente colocou o penico sobre a mesa. Voltou à porta entreaberta e várias vezes fez uns movimentos como se estivesse masturbando um pênis imenso. Em seguida, fez um movimento como se estivesse pendurando um objeto no prego da parede ao lado da porta.
Epa! Gozado... suas roupas estavam secas, o gesso estava seco. Descalçou as botas. Fritou três ovos e os colocou sobre o feijão dum prato, não, duma travessa. Comeu até o fiofó fazer bico. Enfim, podia peidar a vontade sem ter de sair correndo, sem tomar sereno... Estava feliz. Podia dormir feliz.
Nessa mesma noite seu celular Motorola, com tela a laser, toca. - Aa-lô-lô. É o-o Al-al-ber-t. - É o Jack. Meu governo, que já te deu US$ 100 milhões pelo tele-transporte, te dará mais 100 por este guarda-chuva invisível. (OBS: o diálogo estava em hebraico, mas eu traduzi).
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