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23h50. --
Num ataque cíclico e píssico, risco um xis no lado esquerdo do peito. O alvo: meu coração quente, ora gelificado. Preciso morrer urgentemente. Não tenho descendentes nem sinto saudade da sujidade que me cerceia e me cerca dentro do que não sou, dentro do calidoscópio de relembranças intermitentes. E, se fui outro, já nem sei da letargia em que me vejo como o manequim exposto aos olhares de desdém deixando-me caído, de bruços, sem que viv'alma o coloque na vertical. Quero morrer. Definho ao som dum rock dos anos 70, um clássico que me traz à tona eu vestido de roupas psicodélicas para ser notado. Mudo de estação: um som que até hoje adoro: "Maracatu Atômico". Outra estação... até chegar à voz dum pastor que prega o exorcismo dos demônios desde o gene (...). Como é bom morrer na primavera paradoxal -- penso -- ...nas chuvas, nas lesmas subindo as galhas, os muros... no barro podre e fétido onde as sanguessugas procriam tal resumo de chiqueiro existencial. Ah!, como suguei tantos sentires nas falas como notas dissonantes da melodia universal de desejos e frustrações! Ah!, como é bom divagar sobre o diz-que-diz dos nichos da teórica e heterogênea união de irmãos e meio-irmãos que me olham e nem me veem. Ah!, quanta patifaria nos lares reprodutores da cartilha pueril que se torna descabida à crescença ambiciosa. Ah!, o dardo venenoso, imprevisível, que fere o momento feliz e possível que o meio permite. Ah!, somos nada, apenas dependentes do outro e, pelo outro, vivemos. Ah!, iluminado sou!, por projetar meu fim e rir dos espíritos assombrosos!
23h55. --
Do que me lembro? Lembro-me que roubava figurinhas para o ábum que jamais preencheria. Lembro-me das frutas roubadas para matar a fome menina. Lembro-me da primeira vez que pus os pés em São Paulo. Lembro-me que sempre fui cigano socializado, um pária sem ideologia que nunca quis ter um carro, uma casa, uma caderneta de poupança, um nome. Que nunca quis herança, mas quis um amor inocente (canafeuniano) que jamais realizou-se. Por quê!? Porque sempre senti-me observador: o espectador, não o protagonista. Sempre contentei-me com migalhas, pois o pivete de rua nunca ausentou-se de mim. Amei as mulheres que tive, as respeitei, ciente de meus "élans" casuais, limitados.
23h58. --
Penso na minha mainha que morreu cancerosa. Penso que foi a pessoa mais honesta que conheci. Dela guardo a imagem, um tanto distorcida, em que de sol a sol eu sofria ao vê-la definhar-se puxando água do poço fundo. E também de como eu sorria por ter um prato de angú de fubá e couve na mesa pensa de quem pensava em enganar minha fome. Antes de morrer, já em estado terminal, lembro que lhe prometi um bom vinho português, um naco enorme de mortadela defumada e muitas, muitas azeitonas verdes e pretas pra ela esquecer-se da vida miserável que teve ao lado do meu pai. Contudo, no final, só me restou vê-la com a cruz de chumbo às costas e sentir o quão impotente e frágil é a vida humana. Minha mãe nunca pegou um trocado e gastou com ela mesma. Foi o atributo que me deixou.
23h59. --
Quem ficará com meus trecos, meus objetos e textos medíocres? Há um silêncio inquietante nesta sala quebrado pelo tic-tac do relógio analógico. Já não me recordo de tudo que escrevi. Não me recordo de meus inimigos e desafetos. Gostaria que eles soubessem que sempre convivi com um monstro dentro de mim: o da indignação. Vida longa a todos! Meus poemas são decadentes, feios demais... mas, em respeito à poesia, não direi um só palavrão nem pensarei em cacofonias... não e não! Ponto. Meu ato seguinte não será de covardia, pelo contrário, será um ato original, talvez o único em que satisfarei meu real desejo "na fissura", embora o espelho desta cômoda em que escrevo insista em me dizer: "fique um pouco mais".
24h00. --
Está consumado. Gotas de sangue mancham minha camisa e calça brancas. Estou trêmulo. Estou no centro do campo e os espectadores estão na expectativa... eles vibram no aguardo da espetada final. Experimento meu suor. Meus pelos estão eriçados. Vou simplificar: na gaveta tem meu revólver com duas balas no tambor pra desencargo de consciência. Só preciso de uma. Deito-me na cama desarrumada e mal-cheirosa. Vejo soldados num campo de batalha, corajosos, atirando e fincando as baionetas uns nos outros... e o coração plasmado pela mão da natureza desfaz-se com a avalanche em qualquer monte Everest na estação vernal. Pássaros negros, nômades, perfilados como flechas de setas pontiagudas, rumam para não sei onde no vazio grafite de pigmentos brancos borbulhantes em minha última visão e pensar reais. Eles, os soldados, matam para não morrerem; eu, morro agora pelo medo de matar.
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