MÍMICA

Data 10/10/2018 15:36:30 | Tópico: Crónicas

Anterior ao desejo desenfreado de autenticidade encontra-se o tempo sombrio da busca por aceitação. Naquele início de milênio, porém, todo meu conhecimento resumia-se a um bairro e uma escola. Incapaz de assimilar o significado da palavra genuíno. Aliás, nem mesmo sabia da existência de tal vocábulo.

Entre as disputadas partidas de futebol pela rua, um dedo ou outro perdendo o tampão, colocava-me observando as minúcias dos gestos daqueles colegas dos quais as meninas tinham algum apreço. Raridade em meio aquele ciclo de amizades. Mas eu precisava descobrir uma forma de agradar. E, obviamente, passava longe do roer unhas, gaguejar e permanecer avermelhado num estado de riso idiota de total incompreensão.

Fosse como fosse, o charme deveria poder ser aprendido. Testemunhava deslumbrado, diálogos complexos sobre festinhas, encontros para assistir filmes em vídeo cassete, cumprimentos com beijinhos no rosto. O enigmático mundo além do alcance. E sonhava receber o convite que mudaria a vida miserável de menino rejeitado.

Repetia siglas indecifráveis, como cdf ou bv, estufando o peito e tentando demonstrar uma confiança inexistente. Embora enturmasse com os populares, usufruísse da mímica, tudo desmoronava no menor questionamento. O plano cuidadoso para conquistar as meninas da quinta série empacava num detalhe ínfimo: eu ainda era eu. E as meninas faziam questão de apontar este fato.


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