PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 12

Data 04/01/2019 16:17:22 | Tópico: Textos -> Outros

PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 12

Carlos Vinícius, pastor neopentecostal brasileiro, caminhava pela rua junto ao porto de Lübeck. O verão da Alemanha, à maneira d'uma pintura impressionista, coloria de embarcações o velho porto báltico de águas frias e azul profundo. O marido de Júlia era um homem ainda jovem, circunspecto, olhando para a distância do mar. Recuperava-se bem do colapso nervoso, meses antes em Khartoum, quando fora embarcado sedado n'um avião comercial para Hamburgo. Acordara durante o voo, confuso-mas-aliviado de sair do Sudão, demorando para atinar que Júlia ficara sozinha em Khartoum. De Hamburgo, recebido pelo ex-professor de Júlia, foram para a casa d’ele, de trem, em Lübeck.

Era inverno e a cidade pareceu-lhe escura e cinza. Conversando meio em português e meio em inglês, o professor procurava apoiá-lo. Destacava a coragem e desprendimento que tiveram, ele e Júlia, em levar a igreja evangélica aos rincões da África Oriental. Com efeito ele próprio, luterano, lembrava-se do Brasil com carinho de missionário e admirava sobremaneira quem movido pela fé em Cristo se dedicava ao trabalho humanitário. Carlos, fragilizado, perguntava por Júlia. Ele não tinha muitas notícias… As semanas passavam devagar, com dias curtos e frios. Sua rotina era acompanhar o professor e sua família aos cultos na igreja luterana e fazer o tratamento psiquiátrico. Além da síndrome de pânico, precisava lutar com a raiva que sentia de tudo aquilo: Como pudera permitir que Júlia ficasse sozinha n’um país como o Sudão? Esperava pelo pior…

Seus temores foram sanados quando, após meses, a igreja no Brasil lhe comunicou que a pastora Júlia lhes contactara a partir d’uma base militar em Uganda. Enviaram-lhe recursos para que pudesse se encontrar com ele na Alemanha. Estava a salvo! Carlos Vinícius fez questão de publicizar sua gratidão, orando via skipe com a igreja no Brasil, com telão para a assembleia… Fotos de Júlia resgatada em Uganda eram projetadas em meio seu júbilo pela bondade de Deus. Eram, os dois, heróis do Evangelho! Imediatamente o pastor Carlos recobrou seu ânimo e contactou toda mídia gospel para repercutir o grande feito de Júlia enquanto ele próprio a esperava chegar, a qualquer momento, em Hamburgo.

Quando se encontraram, ainda no aeroporto, Júlia o abraçou e chorou compulsivamente. Estava muito abalada, mais magra e com o olhar perdido. Apenas horas mais tarde, já em Lübeck, conseguiu fazer o relato de suas peripécias pelo Sudão. Sentia-se profundamente fracassada por ter perdido todo o dinheiro que levaram n’uma viagem sem qualquer resultado prático. Pr. Carlos, por outro lado, exultava com sua aventura, gravando vídeos e mais vídeos para os fiéis do Brasil d’aquele milagre que era o retorno da Pra. Júlia. O professor que os acolhia chegou a se incomodar com tanta exposição de sua ex-aluna visivelmente fragilizada e rogou ao pastor que parasse de importuná-la. A exaustão de Júlia não passava e eles começaram a se preocupar com sua sanidade. Por fim, Júlia implorou para voltar a São Paulo e rever os pais e irmãos. Carlos Vinícius, porém, preferiu ficar. Planejava novas viagens a Uganda enquanto contactava operadores de fundos financeiros de igrejas cristãs na Europa. Enviou a Pra. Júlia ao Brasil, com pompa e circunstância em vídeos às igrejas, para que a auxiliassem no trabalho pastoral de levantar fundos em todo o país para a missão. Júlia, sem opções, concordou com aquele teatro.

Nada d’aquilo fazia sentido para ela. O que presenciara na África era uma situação caótica onde esforços missionários e humanitários redundavam em fracassos gigantescos. A guerra e a natureza minavam a resistência de quem quer que fosse, como se a miséria generalizada tivesse se tornado a única realidade possível n’aquele lugar. Por mais que dissesse a Carlos que não voltaria ao Sudão em hipótese alguma, ele não a escutava. Argumentava que ela havia lhe mostrado, por Uganda, a possibilidade de criar um corredor humanitário para atender, ao menos, o povo Kuku no extremo sul do país. -- ”Sem muçulmanos por perto” -- ele dizia -- “Poderíamos fazer valer a força do dinheiro arrecadado” -- e concluiu -- “Há muitas igrejas cristãs em Moyo, no norte de Uganda. Pretendo fazer de lá uma base para operar ações pastorais e humanitárias em Kajo Keji.” --

Júlia ouvia mas não entendia. Acompanhava os relatórios das Nações Unidas por meses e sabia que aquela região era uma das mais afetadas pela guerra civil em curso. Em sua breve passagem por Uganda, a pastora soube que o norte do país se tornara o destino de milhões de deslocados vindos de Kajo Keji e de toda a Equatória Central. Em abril de 2018, quando Júlia foi resgatada, falava-se em cerca de dois milhões de refugiados sul-sudaneses se abrigando em campos pelos distritos do norte, inclusive Moyo, onde Carlos Vinícius pretendia ficar. As notícias eram de que Kajo Keji -- uma zona urbana que chegou a ter cerca de 160.000 mil habitantes -- havia se transformado n’uma cidade fantasma! Mesmo agentes experientes do ACNUR -- Comissariado das Nações Unidas para Refugiados -- relatavam entre lágrimas a situação de abandono e destruição em que encontraram a grande cidade do povo Kuku em março d’este ano. Era difícil imaginar como fazer qualquer trabalho pastoral que fosse n’uma realidade d’estas. Esperava ao menos que, quando Carlos Vinícius conhecesse o norte de Uganda, aquela realidade o demovesse d’uma segunda aventura.

Chegando ao Brasil no início de maio, a Júlia voltou muito diferente para seu trabalho pastoral. Não via qualquer sentido em continuar pregando sobre casamentos blindados quando seu próprio marido não a escutava. Ela chegara no limite com aquela história: O colapso nervoso de Carlos em Khartoum ela até entendera, mas essa incapacidade de enxergar que ela também estava destruída por dentro a incomodava muito: -- Que comunhão de almas era essa -- perguntava-se sozinha -- “quando nada do que dissemos faz diferença para o outro?”. A contragosto, Júlia obedece a determinação de viajar pelo país arrecadando doações para a missão em Kajo Keji, conforme o novo plano do pastor, na esperança de que algum facto novo acontecesse e mudasse tudo, na África ou no Brasil.

Sem embargo, não demorou muito: As conversações pelo fim da Guerra Civil em Sudão do Sul tiveram início em Adis Abeba, Etiópia, no início de junho -- enquanto Tereza e Júlia se retiravam para a semana com as meninas em Itacaré… -- e foram apresentadas para o mundo como um cessar-fogo imediato entre as tropas anti-governo e as do governo. A partir d’ali, o Pr. Carlos Vinícius não tinha mais dúvida de que estariam em Uganda ainda em 2018 para, em 2019, começarem a construir uma igreja pentecostal de Kajo Keji. Até o início das chuvas em abril, quando as estradas ficam intransitáveis, deveriam ter ao menos um teto para reunir as assembleias e pregar o Evangelho. Marcava a data de chegada a Moyo para outubro, quando começa a estação seca para transitarem nos cerca de 150km entre Kajo Keji e Jaba, a capital do Sudão do Sul, para terminar de oficializar a presença institucional da igreja em solo sul-sudanês. Conforme acordado com as autoridades ugandesas, o posto de Moyo serviria para atender os refugiados do povo Kuku e ajudá-los a serem repatriados, n’um trabalho basicamente humanitário. De volta ao território sul-sudanês, entretanto, os refugiados seriam acolhidos pelo trabalho pastoral de Júlia e a missão se tornaria, enfim, uma comunidade.

Enquanto concluía seu passeio pelo porto de Lübeck, Carlos pensava na resistência de Júlia ao início da missão que justamente ela tanto quisera. Há meses que só ouvia desculpas e lamentações… Os preparativos para a missão somados aos esforços que envidara junto a autoridades ugandesas, sul-sudanesas e da ONU fora extenuante. Todavia, estava satisfeito com o desenrolar das coisas. Os relatórios que recebia da igreja eram mais animadores que as conversas com Júlia. Aliás, desde que a encontrara em Lübeck, no inverno passado, sua esposa nunca mais fora a mesma. Havia agora uma relação quase profissional entre eles. O pastor tinha consciência de que há muitos anos seu casamento se transformara n’uma empresa onde ele e a esposa tinham papéis complementares. Após o Sudão, porém, os dois se distanciaram a ponto de não se reconhecerem.

Carlos Vinícius era pastor, mas nunca fora santo. Era filho d’um pastor neopentecostal da periferia de Guarulhos e tinha vontade de chegar longe. Não se pretendia profundo conhecedor da Bíblia ou de minúcias teológicas, mas era um empreendedor nato com faro para estratégias vencedoras de marketing. Ele entendia seu trabalho pastoral basicamente como o de um bom comunicador e se esforçava para passar credibilidade e coerência em seus sermões. Quando conhecera Júlia, ela era uma jovem pastora luterana culta e fotogênica cujo entusiasmo o impressionou: Embarcaram n’uma ampla campanha pelo namoro casto que tinha na relação dos dois, ambos muito jovens e religiosos, um apelo imenso. Ele gostava muito d’ela então, mas o assédio de fiéis -- e mesmo de mulheres mundanas -- era constante. Carlos tinha aparência de bom moço e se vestia muito bem. Sempre chamava a atenção e, quando tinha oportunidade, dava suas escapadas com muita discrição. Não via qualquer problema em dar às pessoas o que elas queriam: Se admiravam um jovem pastor se casar virgem, desmenti-los para quê? Júlia só fora perceber algo de errado quando já estavam casados há anos… Basicamente, por causa dos contactos políticos que estabelecia para o prestígio da igreja. E justificava para Júlia -- “Homens públicos, mesmo evangélicos, têm de se relacionar com todo o tipo de gente para ter poder. É preciso acompanhá-los aonde forem, mesmo que seja em noitadas.”-- Júlia não se convencia, mas relevava. Tinha grande confiança no talento de Carlos para que a visibilidade da igreja e sua reputação se estabelecesse na mídia gospel e nos centros de poder. Sabia que Carlos jogava com ela e com eles… Não obstante, ficava cada vez mais incomodada com sua extensa agenda de compromissos e sua ambição desmedida. O facto é que o trabalho pastoral d’eles se tornara um grande sucesso e sua igreja se expandia por São Paulo e pelo país inteiro.

Júlia era a primeira a reconhecer ser sobretudo mérito d’ele tamanho resultado em tão poucos anos. Apenas não se identificava mais com o casal que estampava capas de livros e se apresentava na TV. A missão, mais do que uma evolução do seu trabalho pastoral, era sua salvação enquanto cristã. Não conseguia mais ver o casamento blindado como um fim em si mesmo… À medida que os anos passavam, percebia cada vez mais absurda a ideia de que o casamento seria, de facto, um caminho de santidade. Ao contrário, não conseguia se imaginar tendo filhos e envelhecer enquanto seu marido se tornava mais atraente e distante. Incomodava-a que se preocupasse tanto em se manter apresentável ao seu lado sem perceber nada em seu marido senão vaidade. Fosse como fosse, aquilo não era amor.

O pastor Carlos, em Lübeck, olhava para o mar mas enxergava as savanas de Uganda.

... e continua ...


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