PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - parte 15

Data 08/01/2019 11:43:08 | Tópico: Textos -> Outros

PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - parte 15

Tereza e Júlia entraram no sedan tão logo o grupo se reuniu em frente ao hotel para sair. Eram 8hs e já haviam tomado o café da manhã. Estavam todos um pouco tensos por saberem aquele o trecho mais difícil da viagem até Moyo. A estrada de rodagem em que trafegavam seguia pavimentada até a capital do Sudão do Sul, Juba, passando por Nimile, onde o rio Nilo entrava em território sul-sudanês. Era a principal via de ligação do jovem país com Uganda e permitia o abastecimento da sua maior cidade. Logo, os primeiros setenta quilômetros entre Gulu e Atiak ainda seriam tranquilos. Entretanto, a partir de Atiak, o comboio deixava essa rodovia relativamente movimentada e seguia por uma estrada de chão batido. Esse trecho do percurso, segundo dos seguranças ugandenses, passava por extensas áreas pouco habitadas e tinha condições precárias de tráfego.

Júlia começou dirigindo. Era bom finalmente estar sozinha com Tereza. Pegou a sua mão e, sem tirar os olhos da estrada, murmurou: -- "Meu amor." -- Tereza sorriu e disse -- "Agora sim, irei aonde fores!" -- Júlia caiu na gargalhada. Estava uma manhã muito bonita e a estrada era boa. Júlia aproveitou que estavam sozinhas e pôs-se a filosofar, tal como faziam em São Paulo -- "Eu quero conversar com Carlos tão logo chegarmos em Moyo, Tereza. Não vou mais fingir que sou esposa d'ele. Até aqui, era necessário continuar com a missão e cumprir os compromissos assumidos pela igreja. Assim que puder lhe falar a sós, vou romper com ele." -- Tereza acompanhava com atenção. Júlia apertou sua mão mais forte -- Ele vai perguntar se eu conheci alguém e eu vou ter de negar para te proteger. Ele pode tornar sua vida muito difícil aqui. Se ele tiver de prejudicar alguém, que seja a mim somente." -- Tereza interveio -- "Não tenho medo d'ele, Júlia. Mas, se preferes assim, tudo bem." -- Júlia continuou -- "Ele vai reagir muito mal. Considera que está aqui por minha causa, mas não é: Eu implorei para não voltarmos ao Sudão! Ele não me escutou; não me escuta. Parece deslumbrado com o volume de dinheiro que está administrando e com o respeito que adquiriu junto às igrejas." -- E continuou -- "Ele alardeia aos quatro cantos que está me apoiando n'esse chamado missionário, mas a verdade é que toda essa estrutura está sendo montada para ele voltar para Europa assim que puder. No que depender de mim, meu amor, vamos ficar aqui apenas os doze meses do teu contrato. Ele que me substitua depois d'isso!... Voltando ao Brasil, com discrição, eu me divorcio de Carlos. Não quero mais viver uma mentira n'esse casamento de conto de fadas. Ele fica com a igreja d'ele e eu trabalharei como terapeuta onde for possível. Qualquer lugar será bom, desde que estejas comigo." -- Tereza sorriu, mas logo uma sombra desanuviou seu olhar -- "E se um dia também não formos mais felizes juntas? Estás renunciando a anos de muito trabalho... Quanto a mim, depois de tanto tentar fazer o casamento dar certo, chego a duvidar que viver junto seja algo bom para um casal" -- Júlia concordou -- "A vida a dois é sempre um desafio, Tereza, mesmo quando há muito amor. Eu entendo o que queres dizer." -- mas atalhou -- "A verdade é que não tem como saber se vai ser bom ou mau. Só vivendo." -- Tereza insistiu -- "E teu trabalho pastoral?" -- Júlia deu de ombros -- "Igreja cristã nenhuma no Brasil está preparada para a ideia d'uma pastora casada com outra mulher..." -- Tereza arregalou olhos -- "Casada?!" -- Júlia corrigiu -- "Casada, enamorada, enrolada... O que for! O facto é que não vou ficar mais me escondendo e te escondendo. Chega de mentiras." -- Agora foi a vez de Tereza apertar forte a sua mão. -- "Meu amor..."

Enquanto as paisagens de Uganda se sucediam pelo para-brisa, Júlia continuava -- "O grande guia do ser humano é sua consciência. Ali habita Deus: Na interioridade da pessoa. Ao vivermos em comunidade, essa interioridade passa a ser mais ou menos exteriorizada. Decerto há comportamentos destrutivos que a vida em comunidade nos ajuda a controlar, mas mal se ouve a própria voz n'esse burburinho, eu penso. Ainda que isolar-se dos outros não seja, em si, uma actitude de crescimento pessoal, o extremo d'isso, ou seja, pautar a existência pelas expectativas ou moralidades dos outros tende a subverter a própria identidade. Era isso que eu vivia quando te conheci, ainda antes de vir para o Sudão. Ah, eu lembro bem de ti n'aquela época, lá no templo da Avenida do Estado, arrastando tua família para o culto... Eu tinha de fazer aquela pose de princesa gospel e ostentar uma relação dos sonhos com um admirável pastor com quem, na verdade, eu mal convivia. N'aquele dia, Tereza, eu estava no fundo do poço. Já havia chorado até as lágrimas acabarem e tomado calmantes para dar conta de sorrir. Tudo porque as pessoas tinham a expectativa de ver pessoalmente a pastora da TV. -- Tereza riu lembrando que ela mesma fora ao templo por isso. Júlia tentou corrigir -- "Não me entendas mal: Apesar de tudo, eu não sou ingrata. Sei que vivi coisas especiais e conheci pessoas que admirava por causa da fama, mas não me prendo a ela. É muito bom falar para uma assembleia e ser escutada; compreendida. Mas, se a gente não tomar cuidado, as palavras perdem o significado e o discurso torna-se vazio. Havia dias em que eu não sabia diferir se quem falava era eu mesma ou a personagem que construí para as pessoas." -- Tereza se enterneceu lembrando o primeiro encontro das duas -- "Eu gostei muito da princesinha gospel! Era incrível para mim, que jamais havia me identificado com igrejas evangélicas, ver uma mulher que não deixou de ser feminina para falar de Deus e relacionamentos". -- Júlia admirou a observação d'ela -- "Entendo. Foi exactamente isso que me animou no início. Eu fui criada n'um lar cristão com uma moral rígida de mérito e trabalho. Querer ser bonita não era algo bem visto, ou contrário, era subversivo; "o primeiro passo para o escorregão do pecado". Quando conheci Carlos e começamos a militar pelo casamento casto, ele me fez ver que a televisão tinha uma linguagem própria, isto é, a fotogenia: As pessoas prestam mais atenção em quem tem melhor aparência... Isso me fez acreditar que havia chegado o momento das mulheres falarem e serem ouvidas nas igrejas. Foi assim que vesti aquela fantasia de terapeuta cristã na TV. -- Tereza concordou -- "O problema de vestir fantasias é que, com o tempo, o corpo e a mente mudam, mas aquela coisa continua do mesmo tamanho. A gente simplesmente não cabe mais n'aquilo. No dia em que te conheci, eu só pensava no tanto que lutei para ter minha família. Eu não era feliz e Afonso não era feliz. Talvez insistíssemos por causa das meninas, mas nem por elas fazia sentido. Acho que era mais medo da dor pela separação que vontade de permanecermos juntos". Júlia concluiu -- "E lá estava eu, cansada de ser admirada. Como a vida é curiosa, às vezes: Eu te conhecer justo n'aquele momento... Sim, eu não queria mais ser admirada, queria era ser amada."

A rodovia era uma reta monótona apontando para o norte. Havia ainda muito movimento de caminhões de carga. O comboio, pela primeira vez n'aquela viagem, seguia sem problemas. Chegaram a Atiak bem antes do almoço. Como o trecho mais difícil era o seguinte, preferiram não demorar na cidade. Pegando o ramal que saia para Laropi, apenas os primeiros trezentos metros eram pavimentados... Pararam novamente. Conforme planejado, os seguranças armados subiram nas carrocerias das caminhonetes. Seriam mais setenta quilômetros de poeira em meio às savanas de Uganda até as margens do rio Nilo. Havia uma estrada que ligava Atiak a Nimule, já no Sudão do Sul, mas ficava na margem direita do rio mais extenso do mundo... A travessia do Nilo Alberto pelo caminho de Atiak para Moyo seria feita por balsa em Laropi, onde um serviço regular e seguro embarcava autos e caminhões para outra margem do rio.

Tereza assumiu o lugar de Júlia na direcção do sedan. Como conduzia o comboio por uma estrada de terra, seguiu muito mais devagar, tomando cuidado com erosões e lombadas. Andaram quilômetros e quilômetros sem ver viv'alma. Na paisagem, apenas alguns plantios esparsos e casas isoladas acusavam a presença humana. No mais, eram savanas a perder de vista. Havia muita tensão por possíveis ataques e ali era realmente um lugar propício: Estavam longe de tudo; no meio do nada. Os seguranças contaram a Tereza que os conflitos com o "Exército de Resistência do Senhor" -- um grupo paramilitar de inspiração cristã -- foi um verdadeiro festival de horrores ao longo dos anos noventa. Massacres de civis, sequestros de meninas, aliciamento de rapazes, assaltos a escolas e universidades... A lista de atrocidades era extensa e revirava o estômago. Alguns casos, como o das "meninas Aboke" -- no qual 139 meninas foram sequestradas d'um colégio interno católico -- alcançaram certa notoriedade na comunidade internacional. Diante d'uma Tereza boquiaberta, os dois comentavam que o famigerado líder do movimento, Joseph Koni, continuava foragido até aquela data e provavelmente se escondera no Sudão do Sul... E advertiram -- "Vocês estão indo para o olho do furacão!..." . De qualquer forma, não seria difícil topar com refugiados sul-sudaneses vagando pelas estradas poeirentas do norte de Uganda ou mesmo de grupos desesperados por ajuda. Tinham de vencer o trecho até Adjumani para voltarem ter um pouco de tranquilidade. Passaram os ajuntamentos de Zapi e Lamack e, já nas cercanias de Adjumani, os seguranças ugandenses retornaram para a cabine das caminhonetes.

Almoçaram n'um posto de gasolina, embora já passasse das 14hs. D'ali até o terminal de balsas de Laropi, já às margens do Nilo Alberto, os plantios eram mais intensivos e as casas mais próximas. Tereza se sentiu mais segura. Júlia, porém, percebendo seu cansaço, se ofereceu para dirigir depois que atravessassem o rio. Tereza, que dirigia incomodada com a possibilidade da pastora afastar-se da igreja, aproveitou e retomou o fio da conversa que tiveram antes de Atiak -- "Sei que teu amor pela igreja é sincero, Júlia. Temo estar te desviando do teu ideal..." -- surpresa, a pastora disse -- "Querida, em relação ao cristianismo, eu tenho perspectiva histórica. Fui educada na igreja luterana e fui ordenada pastora. Isso é parte de mim enquanto eu viver. O neopentecostalismo é apenas uma maneira de ser igreja no século XXI, como tantas outras já foram tentadas. Houve um tempo em que tudo que eu queria era levar às pessoas do meu tempo o Evangelho de Jesus isento de preconceitos. Cedi em muito do que acreditava à visão de Carlos Vinícius movida pelo desejo de ser ouvida. No início, havia essa ideia de que, pela fé, pessoas que precisam de terapia, mas se negam a procurar ajuda, poderiam abrir um pouco a cabeça e tratar os outros com mais gentileza. Jesus, para mim, é alguém que primeiro acolhe, observa as necessidades do outro e depois o orienta a voltar à amizade com o Pai e com o próximo. Hoje, eu prefiro ser feliz primeiro e a partir da minha alegria revelar Cristo Ressuscitado às pessoas, que caber n'uma imagem que considerem válida. É inútil ser capaz de influenciar positivamente milhares de pessoas quando a gente mesmo sabe que tudo à nossa volta é cenário. Não é que eu desdenhe a importância até semiótica da aparência, mas me incomoda tudo ser reduzido à interpretação alheia. Olha para nós duas: Nós nos amamos! Isso pode ser incompreensível para as pessoas -- inclusive as de boa vontade -- mas é um facto: Eu me sinto feliz do teu lado". -- Júlia se entusiasmava -- "Se vai durar um ano ou dez, eu não sei. O que sei é que me negar a te amar seria me impedir de dar o que tenho de melhor em mim para alguém que me dá o que tem de melhor em si. Se isso me torna escândalo para os cristãos por praticar algo que consideram uma abominação, eu só lamento que sejam incapazes de ver o amor sem os clichês românticos das novelas..."

Olhando atentamente para a estrada poeirenta, Tereza escutava e se enternecia: Como era sábia essa mulher! Como a admirava! Tinha até medo por si, de tanto que a amava. De facto, sempre que se sentia muito feliz Tereza era assaltada d'um pavor sem sentido de que tudo desmoronaria n'um piscar de olhos. Evitava olhar para Júlia enquanto ela falava para não se emocionar ainda mais... Ela falava de amor com uma tranquilidade que lhe passava paz. Finalmente, amar podia ser algo bom, prazeroso, cúmplice... Não precisava ser sempre o drama do abandono iminente que sempre vivenciou. Lembrou de suas filhas... "Tão pequenas, meu Deus!" Era difícil estar sem elas em qualquer lugar, mas, em Uganda, era quase cruel. Ligava para sua mãe e enviava vídeos para elas de cada lugar onde paravam. Queria que soubessem que estava sempre pensado n'elas, mesmo tão longe. Chorava antes de dormir, rogando aos céus que elas não a esquecessem ou pensassem que ela as esqueceu. Quando contou para sua mãe que precisaria d'ela para cuidar das meninas por um ano enquanto ela trabalhava no Sudão, ela não tentou demovê-la como Afonso. Escutou tudo em silêncio e apenas disse -- "Vai com Deus, minha filha! Aqui vai ficar tudo bem. Elas vão à escola perto, passeiam com o pai, me fazem companhia. Tanta gente hoje em dia vai para o exterior tentar a sorte e deixa os filhos com os avôs, não é? Ficam com conforto e em segurança enquanto eles nem sabem como vão morar por lá... Já, tu, vais trabalhar com pessoas que precisam muito de ajuda. Antes isso que lavar pratos n'alguma lanchonete depois de tudo que estudaste." -- Tereza recordava... No fundo, amar era querer bem, não impôr o que se acha certo ao outro. Sua mãe jamais a deixaria como ela havia feito, mas não a julgou. Ao contrário, a apoiou dentro de suas possibilidades. D'olhos fixos na estrada empoeirada, escutando Júlia falar de amor, de Deus, do futuro... Tereza teve certeza de que sua vinda fora necessária e que tamanho sacrifício seria compensado com algo ainda maior. Olhou para o relógio: eram 16hs! O grande rio Nilo se aproximava e, após atravessá-lo, teriam ainda duas horas para chegar em Moyo. A longa travessia de Uganda, com tudo o que significou e exigiu, tornou Tereza e Júlia de amantes que eram n'um casal capaz de superar obstáculos. E eles não demorariam...

... e continua ...


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