PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 17

Data 10/01/2019 03:38:00 | Tópico: Textos -> Outros

PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 17

A festa de domingo mobilizou todos os membros da missão com os preparativos e os convites. Estariam presentes o presidente do conselho do distrito e agentes da Acnur - o Comissariado da ONU para refugiados. Uma sul-sudanesa fluente em inglês lhes serviria de intérprete e faria a tradução dos pronunciamentos, pois, ao contrário dos ugandenses, sul-sudaneses da Equatória Central não falavam inglês, sim dialetos tribais e árabe. Clodoaldo e seus homens estavam vestidos de terno preto e usavam óculos escuros. Espalharam-se formando um perímetro de segurança postados nas extremidades do pátio. Estavam armados.

Para ornamentação, esticaram barbantes que atravessavam todo o pátio com fitas plásticas verdes e amarelas pendentes. Trouxeram as mesas do refeitório para fora e as juntaram para perfazer uma longa mesa em frente do palco montado para os pronunciamentos. Os refugiados seriam recebidos com um café da manhã por volta das 8hs e acomodados em centenas de cadeiras plásticas perfiladas em frente ao palco. Logo, comeriam e depois começariam os comunicados. Tereza passou aqueles quatro dias na cozinha ajudando a preparar toda sorte de pães, bolos e biscoitos para encher aquela mesa... O almoço seria a mistura a lá ONU enriquecida com uma galinhada de panela. Seriam servidos sucos preparados a partir de concentrados no almoço. A sobremesa seria um pedaço de goiabada. Na entrada, sobre o largo portão de duas bandeiras que dava acesso ao pátio, esticaram uma faixa com os dizeres HUMANITARIAN POST OF MOYO -- WELCOME TO BRAZILIAN MISSION. Após o almoço, os missionários dividiriam os presentes em grupos usando as cores diferente dos cartões do credenciamento. Eram divisões por idade, onde as crianças eram encaminhadas para brincadeiras ao ar livre, os adolescentes para exibição de filmes no salão de cultos, as mulheres para oficinas de estética no salão escolar, enquanto os homens eram levados para um campinho próximo de terra batida para o futebol. Os idosos eram reunidos para um longo chá no refeitório onde mediante dinâmicas de grupo todos se apresentavam e trocavam experiências.

Estavam todos muito ansiosos em conhecer os refugiados do campo. Eram raras as autorizações que os sul-sudaneses tinham para sair do cercamento, de modo que deveriam chegar animados pela novidade d'aqueles brasileiros em Moyo. Muitos estavam em Uganda há meses e haviam saído de casa apenas com a roupa do corpo. Eram sobreviventes de ataques violentos e cruéis, aparentemente aleatórios, que ambas forças do conflito do Sudão ou um dos muitos grupos de milicianos actuantes na região perpetravam sobre comunidades carentes de tudo. Roubar e barbarizar miseráveis indefesos era algo incompreensível para os brasileiros, mas era a quotidiano d'aquele conflito: Tropas raramente mediam forças, não fazendo mais que vagar pelas florestas e savanas enquanto batiam retirada de posições ameaçadas. Quando a comida acabava, invadiam uma aldeia isolada e expulsavam os moradores, matando um ou outro. As crianças e adolescentes, todavia, eram alvo de sequestro: os meninos para serem aliciados como combatentes; e, as meninas, como escravas sexuais. Uma verdadeira chaga humanitária d'aqueles conflitos da África oriental, os chamados "invisible children" eram uma realidade que minava a esperança d'um futuro sem guerras nos países da região. Havia muita mobilização de activistas em todo mundo acerca d'estes meninos e meninas, mas a realidade que pouquíssimos sobreviviam aos anos de combate e aqueles que o conseguiam tinham imensa dificuldade de serem reintegrados à sociedade. Muitos eram descritos como zumbis modernos, isto é, seres sem alma capazes de atrocidades gratuitas. Drogados, alcoolizados e excluídos de suas comunidades, vagavam até morrer ainda muito jovens.

Eles começaram a chegar tímidos e atravessaram a porteira do posto receosos. Eram recebidos por três missionários sorridentes que lhes davam um folheto em inglês com informações sobre os atendimentos que seriam feitos no posto a partir d'aqueles dia. A maioria, entretanto, não sabia ler e chamava algum jovem para explicar aquilo. Mesmo os adolescentes, poucos tinham mais que noções de inglês. As pessoas se aproximavam da mesa de café da manhã e eram chamadas por mais dois missionários para se servirem. Tereza havia se postado ali, junto das garrafas térmicas de café e leite quente. Pegava copos descartáveis e perguntava com um sorriso: -- "Black coffee or white coffee?" -- e lhes servia o copo fumegante para que apos se servissem dos pães e bolos sobre a mesa. Todos muito calados e observando cada detalhe. De vez em quando surgia um menino mais serelepe e, com um sorriso malandro, pedindo mais. Tereza servia e ainda pegava um biscoito. "No fundo, esse contacto olhos nos olhos era mais importante que as palavras." -- pensava ela. O serviço do café da manhã se estendeu por cerca de uma hora e logo a mesa se esvaziara. Todos comeram e beberam o quanto quiseram, sem maiores problemas. As mesas foram retiradas e os refugiados se assentaram. Tudo precisava ser célere pois logo o sol incomodaria a assembleia. Com o casal de pastores e as autoridades a postos, iniciaram os pronunciamentos.

Carlos Vinícius seria o primeiro a falar. Estava em mangas de camisa, mas bem barbeado e penteado. Dormira pouco nas últimas noites, abatido com a resolução de Júlia, ainda que ambos tivessem se ocupado em função d'aquele evento para se preocuparem um com o outro. De qualquer modo, algo do frescor e entusiasmo do pastor se perdera. Câmeras a postos, a sonorização ligada e autoridades perfiladas: A solenidade teria início.

-- "Saúdo às autoridades aqui presentes. Nosso corpo missionário e, sobretudo, nossos irmãos e irmãs sul-sudaneses! E com grande alegria que recebemos todos vocês aqui hoje em Moyo, Uganda. Nós estamos aqui porque o clamor d'esse povo atravessou o oceano e se fez ouvir nas terras brasileiras. Viemos até a África de coração aberto, humildes, dispostos a nos colocar a serviço no que for preciso. O Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e o Governo de Uganda acolheram nossa proposta de ajuda humanitária e nos credenciou para que esse gesto de boa-vontade se convertesse n'uma ajuda efectiva àqueles que sofrem e buscam solidariedade em solo ugandês. Temos consciência da imensidão do desafio bem como da pequenez de nossa ajuda, mas, como cristãos, acreditamos que o pouco, com Deus, se faz muito! E esse pouco que oferecemos a partir de hoje n'esse humilde posto humanitário representa os esforços e orações de muitos brasileiros que sentem a dor do povo africano. -- o pastor procurava manter a voz firme e o olhar um pouco acima das pessoas da assembleia para não se distrair com suas feições. Apesar da tradução simultânea, os refugiados não esboçavam qualquer reacção àquelas palavras de acolhida. Ao contrário, pareciam cansados de falatórios e incrédulos de boas intenções estrangeiras. O pastor Carlos tomou um gole de água e continuou -- "Foram necessários meses de preparação e muitas viagens para que pudéssemos estar aqui hoje." -- declarou visando dar uma indireta para Júlia: As palavras d'ela diminuindo seu esforço e dizendo que ele viera à África fazer turismo lhe doeram muito. Ele viajara à Juba duas vezes e se encontrara com a missão da ONU no país para conseguir aquele credenciamento. Em Kampala, apresentou um plano de investimentos e obteve autorização para adaptar os imóveis que alugara para receber os suprimentos que a ONU disponibiliza para postos humanitários. Para quem viera um ano antes à África para construir uma igreja neopentecostal e sequer saíra do hotel, aquele posto humanitário credenciado pela Acnur podia ser considerado um grande feito. -- "Reunimos um corpo de missionários cristãos no Brasil que, formado pela pastora Júlia Köller, minha esposa, se habilita para ajuda humanitária e para o ministério pastoral. Oferecemos aos sul-sudaneses nossa fé, nossa esperança e nosso amor em Cristo Jesus. -- Júlia permanecia inalterada enquanto Carlos falava. Estavam vivendo em separação de corpos, mas apenas Tereza sabia. Para todos os efeitos, seria legalmente esposa de Carlos até poder voltar ao Brasil e se divorciar.

-- "Preparamos este dia especial para nos conhecermos melhor. Nós, brasileiros, somos profundamente gratos à África. Temos em nossa formação enquanto povo o sangue, a cultura e a pele africanos. É preciso que se diga: Vocês estão sempre em nossas orações! Esse momento difícil que vocês atravessam, de guerras e conflitos, muito entristece nosso povo que, atento, buscou se mobilizar para trazer nossa solidariedade. Espero que todos possamos trocar experiências n'essa celebração da vida que a cooperação entre povos promove agora aqui em Moyo. Por favor, aproveitem esse dia de festa como mostra de que a alegria dos justos está calando o ódio dos violentos. Sejam todos bem-vindos à missão brasileira no posto humanitário de Moyo! -- Carlos terminou sua fala e fora ovacionado. O sol começava a incomodar os presentes...

Júlia tomou o microfone prometendo ser breve. Estava com um vestido de algodão cru estampado à maneira africana. Usava uma faixa na cabeça do mesmo pano, à guisa de combinação. Ela desceu do palanque e, de microfone em punho, cumprimentava às pessoas da assembleia enquanto falava, circulando entre elas -- "Sim, sejam muito bem-vindos, amadas e amamos do Senhor! -- Carlos Vinícius meneava a cabeça "Como vão filmá-la assim?", pensou consigo. A pastora continuou se apresentando -- "Eu me chamo Júlia e sou uma pastora cristã brasileira. Estou aqui para servir vocês; para aprender com vocês e, se preciso, sofrer com vocês. Não temos muito para oferecer e somos apenas vinte brasileiros aqui dando o nosso melhor para que o sofrimento de vocês possa cessar. Quero que saibam, porém, que, embora sejamos pobres e poucos, somos pessoas carinhosas e alegres mesmo nas vicissitudes. Não quero me alongar, mas, de tudo isso que celebramos hoje, permaneça no coração de vocês nosso imenso desejo de estar aqui e ajudar. Estar aqui é um sonho tornado real. Muito obrigada -- Igualmente ovacionada, Júlia entregou o microfone ao cerimonialista que dispersou a assembleia para a formação dos grupos por faixa etária e sexo. O sistema de som passou a propagar a pleno volume uma playlist de sertanejo universitário... Definitivamente, aquela era uma festa brasileira na África!

O sol já estava abrasador e todos se reuniam conforme programado. O almoço era preparado na cozinha do refeitório enquanto o casal de pastores aproveitava a presença das autoridades para reforçar seus contactos sociais. Tereza circulava entre as mulheres da oficina de estética, fotografando com sua câmera uma a uma àquelas senhoras e garotas para depois lhes imprimir em papel comum suas fotos. Elas sorriam, maquiadas e orgulhosas. Encantavam-se depois com as fotos impressas que guardavam como se tivessem, efectivamente, recebido um grande presente. Tereza se emocionava com a emoção de algumas, sorrindo mesmo com o rosto cheio de cicatrizes... Aquelas mulheres traziam no corpo a marca de abusos, estupros, sucessivas gravidezes, mas, sobretudo, grandeza. Tereza se sentia pequena diante d'aquelas mulheres tão experimentadas pela vida que, apesar de tudo, traziam em si uma dignidade impressionante. Algumas meninas, exageradamente tímidas e tristonhas, não conseguiam sorrir. Era fácil intuir porquê... Tereza respeitava a timidez d'elas e não insistia. Tentava se comunicar em inglês, mas eram sobretudo os olhares que lhe diziam como agir com cada mulher: Abordava se oferecendo para fazer as fotos contra um fundo neutro sob a sombra e disparava tão-logo elas se posicionavam. Fazia cerca de trinta fotos e saía para baixar os arquivos do cartão. Voltava logo, com as fotos impressas, fazendo as mais tímidas se animarem a fazer também. Perdera a conta de quantas vezes fora e voltara até o escritório, mas tinha a certeza de ter feito algo que fizera alguma diferença no dia d'aquelas mulheres. O sorriso d'elas a recompensava.

O almoço fora servido dentro do refeitório que, com capacidade para apenas cem pessoas, recebia os grupos por turnos. Os suprimentos da ONU consistiam no "super feijão"-- isto é, uma variedade transgênica enriquecida que era a base da alimentação dos refugiados -- além da indefectível carne enlatada com molho genérico. N'aquele dia havia ainda couve refogada com alho no azeite de dendê e brasileiríssima galinhada de panela! As bandejas de inox se sucediam enquanto os grupos caminhavam em fila junto aos panelões. Levou cerca de uma hora e meia para todos almoçarem. Após, seguindo a programação, seguiram com as actividades de lazer. O pastor vestiu um uniforme de juiz e foi arbitrar o jogo no campinho... Júlia ajudava a fazer a maquiagem das senhores no salão das esteticistas enquanto Tereza fotografava tudo. O dia passou rápido, alegre. Despediram-se dos grupos às cinco horas e os refugiados voltaram para o campo cercado onde dormiam nas tendas armadas com material humanitário da ONU. Os missionários estavam exaustos, mas, pela primeira vez desde que chegaram à Uganda, dormiam orgulhosos de estarem ali.

Vídeos, fotos e áudios eram enviados exaustivamente para o Brasil e Carlos Vinícius celebrava o sucesso de sua festa. Tentava se acercar de Júlia para compartilhar seu entusiasmo, mas ela o repelia com frieza. Embora juntos fossem uma equipe muito bem-sucedida, Júlia estava cansada d'aquele exibicionismo todo. Entendia que os missionários quisessem compartilhar aquele dia com a família e com a igreja no Brasil, mas seu marido ultrapassava todos os limites. Na verdade, se sentia mal em ser exposta como esposa d'ele. Era como se farsa não tivesse fim nunca! Apenas esperava que Tereza tivesse paciência para que pudessem ficar um pouco mais à vontade depois que ele fosse embora de vez para o Brasil. Sem embargo, ele parecia que se demoraria ali na esperança de fazê-la mudar de ideia. "Será malhar em ferro frio" -- pensou Júlia enquanto se deitava na cama para começar tudo de novo no dia seguinte.

... e continua ...



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