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ESTRELA MATUTINA
lá no campo eu me engalfinhava ficava até se apagar minha estrela querendo sê-la numa estorinha de ninar
quem me esperava era dona Quirina mulata cara de menina messalina nos confins do Pará
me enchia de macaxeira de açaí pra pele brilhar pra agradar painho de anel e cordão de ouro de terno branco de dentes podres encapados do chapelão cobrindo-lhe a calvície que desde cedo eu e mainha fazia no seu colo sentar
quando já mocinha me tocava duma maneira que tenho vergonha de contar
e os machos da fábrica vinham com presentinhos sem valor meu picuá lotar e com eles eu punha-me a rolar
depois eu ia até a lagoa nadava com um peixe pintado no rosto de vermelho do urucum do roxo da amora madura de jenipapo, enfim com fé de um dia chegar ao mar
até a hora que mainha subia na escarpa gritava pr'eu ir trabalhar
"menina berebenta vê se não empaca vá catar os ossos do boi morrido na clareira da mata
vê se estica esse cabelo escova a boca com sal no dedo tem que sair lindos santinhos desses ossos
passa vinagre no arranhão da mão não fica abestada querendo fugir do lar".
"mas mãe a dor mais doída é minha própria vida sou moleca selvagem pé rachado de correr livre no estradão".
e brincando com os moleques serelepes lá no canavial eu vomitei senti uma zonzura estranha pra mainha eu contei
minha barriga foi crescendo uma vida dentro de mim nascendo e à luz uma menina eu dei
pus-lhe o nome de Estrela Matutina Luz e Sol filha cabocla da terra vermelha das campinas de ventos brandos que cresceu e se foi sem adeus ser minha estrela nas ruas de Belém e nem se lembra mais de mim do meu cheiro dos nossos banhos de alecrim
nem se lembra mas vou lembrando que minha vida se foi assim ao redor da usina desativada envelhecida enferrujada
e desta beira estrada com minha trouxa na cabeça canto e choro porque ninguém chora por mim
painho morreu duelando com seus filhos meio-irmãos mainha a carrocinha veio buscar ela dorme bem perto do rio se foi esperando que a lenda do boto que me contava às noitinhas se tornasse realidade
"estrela matutina me guia há tanto tempo que o tempo me definha, há tanto tempo que nem me lembro que fui menina."
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