Tesoureiros da luz,

Data 19/04/2019 14:56:53 | Tópico: Poemas




Tesoureiros da luz,




Tenho alma de cão pastor cego,
Sinto nas galáxias o que não vejo
Cá baixo, caminho na certeza de
Voltar nunca o mesmo que fui,

Faz tempo, o futuro foi lá trás,
Sigo meus pés descalços, a alma
As estrelas e o espaço, tanto faz,
Formiga d'asa, onde possa voar,

Embarcar para as estrelas que sigo,
Pastor perseguindo velas, cego,
Queimando os dedos noutros
Universos loucos, menos paralelos,

Assim como um tesoureiro da luz,
Caminhando no breu pelos pontos
Que brilham, sinto pelo som os astros,
Pouso nos cotovelos os ombros,

Nas estepes o desafio, a orgia da luz
Aí percebo quanto sou frágil, caniço
Da luz que sai pela voz e apenas,
Se é chama, é orgânica na lucidez,

Ela nos diz se a podemos desfiar
Ou não fiar, dependendo do ouro,
Da densidade frágil do fio, da voz o ar
E do modo como sai da boca, o cosmos

Da confiança e no tear próximo,
O pouso e os cabelos de Berenice...
Da janela os reconheço, cada transeunte
Pelo brilho que apresenta e usa,

Como que se germinassem espelhos
Na calçada, reflectidos na minha
Face a pontos ouro de luz, fina Ursa Menor
Ou grossa, difusa ou orgia em chama,

Tenha ou não eu alma de pastor cego
Certo é ter de rinoceronte ego, escaravelho
Sinto nas galáxias o que não vejo, pego
O facho e caminho para um Sol poente vizinho,

O meu travesseiro de luz.





Jorge Santos 04/2019
http://namastibetpoems.blogspot.com









“Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”, de Goethe

por - Israel Fernandes
Escrevendo para aprender a escrever.


Wilhelm é um jovem que persegue suas grandes paixões, teatro e mulheres, em busca daquilo que lhe parece a liberdade — especialmente das responsabilidades que a carreira do pai, bem-sucedido comerciante, faz pairar sobre sua cabeça.

Desde o princípio da história, Wilhelm demonstra um fascínio com o teatro que é, na verdade, nada mais que sua própria visão do teatro, distante da realidade. Traço que fica claro pelo tédio que sua primeira paixão, a atriz (óbvio!) Mariane, sente ao ouvir o relato do surgimento de sua afeição por aquela arte. Mesmo sincero em seus gostos, ele se põe a temperar sua própria história com racionalizações pretensiosas sobre vocação, já que é culto o bastante para justificar suas preferências.

E, por ser pobre em experiências, Wilhelm se apressa em enxergar em cada uma delas um grande espetáculo, capaz de determinar o rumo de sua vida.

Após uma crise de ciúmes, Wilhelm abandona Mariane e o teatro, e assume, a contragosto, a tarefa de cuidar dos negócios do pai em outros lugares. A jornada o coloca em contato com uma ampla galeria de tipos, de clérigos a nobres, passando por soldados e atores, que acabam ressuscitando seu gosto pelo espetáculo. Sucedem-se, sem parar, paixões por mulheres diversas, encenações, confrontos com amigos e inimigos, encontros com sábios — alguns deles céticos da veracidade de seu amor pelo teatro. Apesar da promessa de redefinir os rumos de sua vida, essa nova aventura faz com que Wilhelm se entregue ainda mais a suas paixões da juventude. Até que notícias de casa e alguns traumas encerram essa primeira parte do romance.

Além dessa trajetória, a Parábola do Filho Pródigo romanceada, a estória carrega uma crítica àquilo que o senso comum percebe acerca da atividade artística e dos empreendimentos comerciais.

Arte e comércio não só são atividades popularmente consideradas contraditórias, como se lhes atribuem, quando comparadas, valores positivos a uma e negativos a outra. Existe a visão da arte como reduto de vagabundos, e do lucro como medida das virtudes de um homem. Por outro lado, a vereda pela arte às vezes é vista como uma decisão corajosa, atitude em si bela como o próprio produto que se espera da arte, enquanto a carreira de empreendedor seria fria, mecânica e tediosa, quando não um mero resultado da ganância.

É essa segunda comparação que Goethe trata de desmistificar.

Num poema composto por Wilhelm, a predileção de um jovem é disputada entre uma Musa e o Comércio, aquela retratada como uma mulher bela e caridosa, aquele por uma senhora austera e rabugenta.

Em outra passagem, ele confunde a magia proporcionada pelo teatro com o labor da atuação que permite essa magia, ficando escandalizado ao testemunhar atores reclamando dos salários.

Enfim, é o próprio herói da estória, inicialmente imaturo, sonhador e apaixonado, que o autor elege para representar a superficialidade do culto à arte em detrimento da atividade comercial.

Também é superficial o sentimento de Wilhelm pelo teatro, cuja falsidade é escancarada quando, exortado pelo amigo Werner a tratar de negócios para suprir as necessidades de sua família, o protagonista se dedica, por “espírito de contradição”, a uma companhia de atores. Aí, sua suposta vocação artística é exposta como aquilo que realmente é: um pretexto para fugir da responsabilidade de seu destino.

Wilhelm, temendo a perda da liberdade e apegado a memórias de infância que animam sua paixão, põe-se a idealizar o ofício do artista, tal qual o grande público ou mesmo o artista imaturo, que imaginam os sonhos sendo realizados pelos sonhos, não pelas exigências da vida no mundo real: trabalho, esforço, humildade e responsabilidade.

O aprendizado dessa lição constitui a segunda parte da história, quando Wilhelm trilha caminho oposto ao de sua juventude. A vida de que ele desfrutava livremente enfim cobra seu preço, impondo-lhe responsabilidades que trazem as marcas de suas próprias ações. Ao assumi-las, recebe como recompensa o aprendizado a que alude o título, tanto mais valioso quanto mais intensas e amargas as desilusões.

Goethe parte do estereótipo para discutir as tensões entre o agradável e o útil, mostrando que há grandeza e virtude tanto no rigor cobrado de um artista por seu ofício quanto no impacto positivo da atividade econômica, de modo a revelar a nobreza em comum a qualquer vocação.

E é por meio do aprendizado de Wilhelm Meister, ou seja, do caminho que parte da ignorância da juventude para a sabedoria da maturidade, que Goethe proporciona ao leitor a verdade sobre seu próprio ofício como artista para, por fim, apresentar um elogio à vocação como norte supremo da vida, acima de preferências sentimentais e dos obstáculos que compõem esse caminho. A vocação simplesmente é, e em troca desse caráter imponente, recompensa a pessoa por simplesmente segui-la.

Perto do fim da história, Wilhelm é apresentado a uma sociedade secreta que, simbolizando a Providência Divina, revela ter observado atentamente suas aventuras. O que se segue é uma série de ensinamentos que, à luz da experiência do herói, o despertam para a verdade, e cuja transcrição dispensa qualquer comentário.

O abade que lidera o grupo repreende Wilhelm por sua arrogância:

“[…] tudo que nos acontece deixa-nos rastos, tudo contribui, ainda que de maneira imperceptível, para nossa formação; é perigoso, no entanto, querer prestar-se contas disso. Pois ou nos tornamos orgulhosos e negligentes, ou abatidos e desalentados, e tanto um quanto outro é embaraçoso demais para o futuro. O mais seguro consiste sempre em fazer o mais imediato, o que está à nossa frente. […]”
Ao questionar um dos membros dessa sociedade o porquê de terem permitido que ele tanto vagasse pelo mundo, errando e sofrendo, Wilhelm recebe como resposta:

“Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em deixar que o errado sorva de taças repletas seu erro. Quem só saboreia parcamente seu erro, nele se mantém por muito tempo, alegra-se dele como de uma felicidade rara; mas quem o esgota por completo, deve reconhecê-lo como erro, conquanto não seja demente”.
Sintetizando essas visões sobre a liberdade para o erro e a sinceridade vocacional, Natalie, umas das várias mulheres por quem se apaixona, afirma:

“Só nossa educação equívoca, dispersa, torna indecisos os homens; desperta desejos ao invés de animar impulsos, e ao invés de beneficiar as verdadeiras disposições dirige seus esforços a objetos que, com muita frequência, não se afinam com a natureza que por eles se esforça. Prefiro uma criança, um jovem, que se perde seguindo sua própria estrada, àqueles outros que caminham direito por uma estrada alheia. Quando os primeiros encontram, não importa se por si mesmos ou por uma outra direção, seu verdadeiro caminho, ou seja, quando estão em harmonia com sua natureza, não o deixarão jamais, enquanto os outros correm a todo instante o perigo de se livrar do jugo alheio e entregar-se a uma liberdade incondicional.”
Apesar de desmentido como vocação de Wilhelm, o teatro não é tratado como equívoco ou perda de tempo. A experiência moldou sua personalidade e a familiaridade com as obras fortaleceu sua imaginação, abrindo-o para o aprendizado, qualquer que viesse a ser.

Afinal, despertar para a realidade, não adormecer a imaginação num mundo de fantasia, é a verdadeira magia da ficção. E foi justamente a dedicação ao teatro, empreendida até o esgotamento, que levou Wilhelm à revelação da verdade de sua vida.





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