OU ENTÃO NÃO SERÁ NADA

Data 19/01/2020 03:11:06 | Tópico: Crónicas

OU ENTÃO NÃO SERÁ NADA

De tudo o que se discutiu acerca da lamentável paráfrase que Roberto Alvim, agora ex-secretário de Cultura do Governo Jair Bolsonaro, fizera d'um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista do regime de Adolf Hitler, o que parece ter ficado em último plano é justamente o assunto principal do vídeo, ou seja, um desejo de cultura e de arte nacional brasileiras. Esse debate parece ter se tornado urgente para o governo Bolsonaro diante dos êxitos recentes em premiações internacionais de exemplares candidatos ao carimbo de ARTE DEGENERADA sob a perspectiva bolsonarista de apoiar apenas manifestações culturais de carácter tradicionalista, cristão e conservador.

Com efeito, a indicação ao OSCAR do documentário Democracia em Vertigem, da cineasta Petra Costa, bem como a consagração do Especial de Natal "Se Beber Não Ceie", do humorístico Porta dos Fundos, ao vencer o prêmio Emmy Internacional na categoria de "Melhor Comédia" fizeram acender o sinal de alerta da, digamos, Cultura Oficial.

Essa sequência de "más" notícias somada à vandalização da sede da produtora do Porta dos Fundos no final de 2019 no bojo da repercussão imensa do Especial de Natal d'esse ano, "A Primeira Tentação de Cristo" parecem ter demandado uma contra-ofensiva cultural do Governo no sentido promover iniciativas artísticas audiovisuais, plasticas e literárias capazes de fazer frente a grupos e artistas hostis ao bolsonarismo.

Ao largo da inspiração nazista veementemente condenada dentro e fora do país, o projeto d'uma arte nacional capitaneada pelo Governo Bolsonaro, cuja relevância e ortodoxia fosse aferida tanto pelo olavismo quanto pelo neopentacostalismo (com o integralismo correndo por fora…) revela-se algo terrivelmente perturbador. Para além da forma goebbeliana, o conteúdo do discurso de Alvim explicita o carácter excludente da política pública para a Cultura: "Ou será a nossa arte, ou então não será nada!" parece resumir a proposta d'um programa artístico ainda em construção. O que se declara, historicamente, é que uma nova era irrompe do governo de extrema-direita sob o qual vivemos hoje em dia. As repetidas declarações do Presidente em questionar os critérios e mesmo da mera existência da ANCINE refletem um desejo, senão de censura da produção audiovisual financiada pelo Governo, de exclusão de iniciativas cujo ideário presente na obra ou do activismo dos artistas envolvidos. Denunciada à exaustão como mamata de artistas esquerdopatas, produção artística via Lei Rouanet se transformou em verdadeira caça às bruxas, com execração pública de quase toda a classe artística beneficiada.

Como em muitas áreas d'este Governo, também a Cultura constrói sua narrativa programática através da exclusão e da negação dos princípio que nortearam a produção artística com financiamento público. Em lugar de pluralidade de temas e ideias, restrição de assuntos à "identidade nacional cristã"… Sai a discussão em torno das afectividades e relacionamentos contemporâneos e entra a defesa enfática da família tradicional… Condena-se o humor com personalidades judaico-cristãs, mas financia-se filmes, documentários e até eventos conservadores… Retiram-se livros didáticos e literários das escolas públicas enquanto cadernos e disciplinas com símbolos pátrios retornam para as salas de aula… Por resto, a História é revisada e reescrita em conformidade com a visão de mundo de quem acredita estar inaugurando uma década de transformações reaccionárias e conservadoras.

É preciso estar atendo a esse projeto de "revolução cultural" que o Governo Bolsonaro começava a implementar no malfadado vídeo de inspiração nazista que assombrou o mundo: A questão não é apenas a aparência do que Alvim disse, mas sobretudo nas entrelinhas d'aquilo que defendeu… Essa arte heroica nacional brasileira deve ser identificada e nomeada imediatamente. Proponho, mais como denúncia do que como fruição d'essa arte ainda por vir, que seja chamada de PÓS-BESTIALISMO, ressaltando que se trata d'uma espécie de zoofilia onde o Governo é o sexopata e o povo o animal doméstico abusado (sempre é bom lembrar que Bolsonaro admite ter se iniciado sexualmente com galináceos…)¹.

É um programa artístico que se pauta, antes de mais nada, pela violência para com o público e sua desumanização enquanto agente racional do consumo artístico. Uma arte a ser patrocinada pelo Governo para educar e disciplinar o povo, mantendo-o em seu lugar, de modo a apaziguá-lo com a religião e fasciná-lo com a autoridade estatal. Em suma, arte para rebanhos. Apresento aqui, à guisa de ilustração, um soneto meu sobre o movimento recém-nomeado:

PÓS-BESTIALISMO

Não deixo de sorrir face à retórica
D'aquele que pretende ser profético
E só faz emular mau gosto estético
No afã d'uma carreira meteórica.

Crendo civilizar a turba eufórica,
Propunha catequeses para o cético:
- "Reduza-se à moral o debate ético,
N'um encimar de cruzes à ordem dórica!"…

Fosse cômico não seria trágico
Ter arte para ornar sonhos despóticos,
Tornando belo o mal n'um passe mágico.

No mais obscurecer medievos góticos
E, em vez d'um manifesto antropofágico,
Frases feitas ecoadas por robóticos.

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Espero que explicitando a natureza excludente d'esse movimento iniciado com o concurso nacional, proclamado com pompa e circunstância nazifascistas pelo ex-secretário Alvim, não se perca de vista o perigo que corremos em face d'uma produção cultural restrita e ultrapassada.

O certo é que quem quer que seja nomeado em seu lugar não mexerá em uma vírgula da política pública anunciada para a Cultura que se pretende válido para as próximas décadas sob a mão forte e segura de presidentes como Jair Bolsonaro.

Explicitar a estética nazista de seu vídeo de lançamento por si só não interrompe sua urgência em destinar recursos públicos exclusivamente para igrejas cristãs, escolas militares e produtores culturais alinhados com o olavismo. Uma nova catequese - não mais jesuíta, sim neopentecostal - pretenderá civilizar nossa malemolência tropical até nos tornarmos peças perfeitas para a reposição das engrenagens na Periferia do Capitalismo. Claro, após anos de bla-bla-blá heroico, talvez sejamos capazes de preparar batalhões de carne de canhão para os conflitos capitaneados pelos Estados Unidos cuja vassalagem já temos exercitado com toda a alegria…

Afinal de contas, não nos iludamos, essa era a real finalidade de toda a máquina cultura nazista na qual Alvim se inspirou.

Betim - 17 01 2020


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Notas:
¹-https://catracalivre.com.br/dimenstein/damares-alves-jair-bolsonaro-e-o-sexo-com-animais/


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