
UM PÉ D'ÁGUA
Data 14/02/2020 18:12:12 | Tópico: Poemas
| UM PÉ D'ÁGUA
-- Invernou… -- Chove na roça. -- Melhor tomar uma pinga Quando a quarta s'endominga E o dia anoitece em poça De goteira que respinga!… -- Mais do que pobre na chuva Clamo contra os elementos Pelos terríveis momentos, Sem capa, galocha e luva, Enfrentando os quatro ventos.
Trotava n'uma égua baia De marcha um tanto ligeira Mesmo n'aquela lameira: Vinha n'um caia-não-caia; N'um sobe-e-desce ladeira… Enquanto a tarde baixava, Eu e a égua no desvario Fomos tinindo de frio, Pois tanto por chuva brava Quanto por vento bravio.
Longe avisto a propriedade De gente rica e importante. O dono andava distante N'alguma distante cidade… Sem família pela herdade, Ninguém me vê no aguaceiro. E eu… Vejo selas de couro, Mais duas esporas de ouro Junto à tulha do caseiro Penduradas qual agouro…
Chego encharcado à varanda E a estranhos peço pousada. Ciosos de tão má jornada, Tão-logo a chuva se abranda, Me levam a outra morada Onde abrigado eu pernoite… A chuva não dava trégua Até que, légua após légua, N'um rancho no antro da noite Enfim amarrei minha égua.
Despeço-me do caseiro Que por guia me trouxera Àquela extrema tapera Pr'os lados d'algum pesqueiro Onde a escuridão impera… Logo ajeito meus trastes E me deito cerca ao fogo. N'uns goles de cana afogo Da solidão os contrastes: Azar no amor e no jogo...
Depois de cear solitário -- Mandioca e linguiça fritas-- Recordei minhas desditas N'esse Fado obscuro e vário Prenhe em passagens aflitas… Lá fora, a chuva constante Amaina e volve em pancadas. E o mundo tão mais distante Quando escutei as passadas D'alguém pela noite errante:
-- "Ôoo de casa!"-- disse o estranho -- "Ôoo de fora!" -- respondi Foi se aprochegando ali E na caneca d'estanho Logo da pinga servi. Ele não fez cerimônia: Bebeu e comeu à farta, Falou sem mais parcimônia E, diante de minha insônia, Mostrou-me enfim uma carta…
"A quem interessar possa, O portador da missiva Serviu comigo na activa Das armas da Pátria nossa…" Sentados n'aquela choça Nos fins dos confins do mundo Passávamos por senhores, Imersos em bons lavores, Mesmo que dois vagabundos, Pedindo alhures favores…
O outro, coletor de raízes, Andava na mata virgem, Ostentando nobre origem, Sobre fundas cicatrizes E farrapos de lentigem… Costumado àquele rancho, Se abrigava da invernada Até volver para a estrada, Tomando-se caminho ancho Que desse em feira afamada.
Era chuva que Deus dava Alta noite, às bategadas… Das canecas emborcadas 'Pós que a língua tilintava Nas bocas emborrachadas. Meu visitante animado, Contava causo após causo, Quando, do nada, lhe pauso E lh'envido, desafiado, Uma prova de arrojo e auso:
-- "D'aqui à vila são horas Debaixo de chuva e vento. Na borda do mato, intento Correr trilhas em desoras E trazer da tulha esporas Da fazenda dos maganos Que me deram por retiro Esta cova de vampiro… Este abrigo de mundanos… Onde revolto suspiro."
Foi dito e feito: Peguei Meu poncho 'inda molhado E saí a pé pelo eirado Até que à estrada voltei De novo todo encharcado. Andando feito infeliz Curvado em chuva pesada Sem ver na névoa cerrada Mais que um palmo do nariz Seguia por rumo a estrada.
Mas os céus, indiferentes, Por sobre justos e injustos, Se derramava entre sustos A meus passos delinquentes… Mais açoitando os arbustos E as palmeiras recurvadas, Em saraiva ora o aguaceiro Enlameia o trecho inteiro, Engrossando as enxurradas Enquanto andava ligeiro.
No baixio, feito enchente Passava acima da ponte Um corguinho cuja fonte Lacrimava tão-somente, Agora, aqui bem defronte, Em rio de correnteza Se via afinal mudado… Ao muro da ponte atado Fui, sem susto nem reza, Atravessar ao outro lado.
Logo eu topei a fazenda Onde pedira licença. A minha raiva era imensa!… O meu rancor era lenda!… Passei detrás da despensa Sem ouvir cachorro ou gente E na tulha penduradas Vi as esporas douradas, Que cobicei plenamente Há poucas horas passadas.
Peguei com algum esforço Sem ver nem ouvir viv'alma. Decerto, com muita calma (Porém sem nenhum remorso), Pela alameda de palma Chego à porteira em paz. E volto por rumo ao rio Que enchera todo o baixio. Deixando as águas atrás, Passo a ponte por um fio!…
Já amanhecia quando Avistei o rancho de pesca A brisa até correu fresca Face ao sítio miserando N'aquela grota grotesca. O sol nascia no outeiro E a chuva enfim dava trégua! Contudo, meu companheiro Foi sem deixar paradeiro E nem rastro de minha égua…
Entrei no rancho aturdido Sem saber o que fazer: Aonde foi s'esconder Não podia ser seguido… Só na mesa pôde ver, A carta mostrada então!… Pegando o papel, aflito, Havia no verso escrito: "Ladrão que rouba ladrão…
Betim - 14 02 2020
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