MANSUETO

Data 01/04/2020 05:14:05 | Tópico: Poemas

MANSUETO 
 
-- " Quem anda desde a aurora já enlutado? 
Quem é esse senhor todo de preto 
Que caminha p'lo campo neblinado? 
Quem, tão ensimesmado e circunspeto, 
Vagando insone em meio ao insone gado?" 
-- '" Herdeiro de Gonçalves indireto 
E neto primogênito, portanto, 
Aquele é o Senhor de Monte-Santo!'"

- "Sim, mas, por que anda em trajes de velório 
De capa preta sobre o preto fato? 
Como homem tão esplêndido e notório 
Chafurda as suas botas n'um regato?" 
-- "' Avança, resoluto, ao promontório 
Para ecoar pelo abismo o grito ingrato 
Onde ondas em perpétua sinfonia 
Façam coro à sua íntima agonia.'" 
 
-- "Ouvi! Verte ganidos sobre o Atlântico 
O rico herdeiro de alma miserável. 
Decerto s'entretem como romântico 
Ou actor a declamar do praticável…" 
--"' Não! D'um celerado o triste cântico 
S'espalha em desespero formidável!… 
Lamenta ele uma perda mui sentida, 
Que em vão lamentará por toda a vida…! '"

-- "Não soube de enterrar sua consorte 
Tampouco de moléstia na família… 
Ignoro haver mal que desconforte 
A quem tanto a Fortuna há tanto brilha 
Decerto, para tal, levou-lhe a morte 
A sua muito amada única filha…" 
--"' Enganai-vos, pranteia ele uma prima 
Por quem desenvolvera estranha estima…"

-- "Valha-me Deus! Que absurdo, ó temerário!… 
Que cousas conheceis que desconheço? 
-- "'Não essas conversinhas de ordinário 
Que o povo conta a frente pelo avesso, 
Mas sim o que se pensa solitário 
E s'executa às ocultas mais expresso: 
Ardendo de paixão por uma virgem, 
Matou-a enlouquecido de vertigem.'" 
 
-- "Que escuto?! Nosso jovem mais brilhante 
Assassino de moça em sua casa?! " 
-- '"Deveras, surpreendi-o claudicante 
Depois d'ele enterrá-la em cova rasa!… 
Em choque, nada havia em seu semblante 
A não ser os dois olhos 'inda em brasa. 
Chamei sua família -- que o cuidou --
E à bela com exéquias enterrou… "' 
 
"'Desde então ele vaga noite afora 
Até topar com tal desfiladeiro 
Do mesmo modo como ao enterro fora,
Recoberto de preto o corpo inteiro… 
Sua triste figura me apavora 
Tanto quanto o malfeito derradeiro 
Àquela moça que ele tanto amara 
E que, ao negar seu corpo, molestara.'" 
 
-- "Monstro! Inumano! Estúpido! Canalha! 
Eu mesmo hei-de matá-lo com as mãos!… 
Como fugira à forca? Que gentalha! 
Que família s'esconde entre os irmãos?!… 
Uma camisa de seda por mortalha 
Suja de sangue e lama d'estes chãos…" 
-- '" Vamos ter co'o fidalgo, como julgais, 
A fim-de que ele pague com seus ais!…"' 
 
"'Sim, Gonçalves Terceiro: o Mansueto, 
Aquele de quem fora bom amigo, 
Tanto na boêmia quanto no escudeto. 
Todavia, testemunha do perigo 
De cujo crime ouvira o atroz dueto, 
Deixando meio-morta e sem abrigo 
A amada que jamais se quis amante 
E morrera em seus braços suplicante. "' 
 
-- "Embora légua e meia a caminhada, 
D'ali, cercada a terra, só há mar! 
Não há fuga senão jogar-se ao nada, 
Pulando sobre as ondas a espumar. 
Ajudai o suicida na empreitada 
De pelo abismo extremo se matar!" 
-- "' Certamente, caríssimo, eu irei 
E aceito, se assim for, rigor da lei."'

Assim juramentados homicidas, 
Partiram dois senhores respeitados 
Sob pena de perderem suas vidas, 
Se, em face do malfeito, condenados… 
Justiça mais vingança divididas 
Nas mentes de homens tão civilizados 
Fizeram escurecido o claro dia 
No instante em que a neblina se perdia.

O alto d'onde avistaram o fidalgo 
Era estrada deserta n'aquela hora. 
Não houve caçador, tampouco galgo 
A perseguir as lebres campo afora 
Não houve ali vadio em busca d'algo 
Ou rebanhos descendo sem demora. 
Não houve mais viv'alma pela estrada 
Enquanto os dois cumpriam a jornada. 
 
Os dois, já pressurosos e silentes, 
Sabiam que impossível de escapar 
Do poder ancestral d'aquelas gentes 
Há muito acostumadas a mandar. 
Visto que fossem tão indiferentes 
Às leis e autoridades do lugar. 
Sabiam que seriam descobertos, 
Mesmo que seus motivos fossem certos. 
 
Sabiam que o sujeito que buscavam 
Era, d'entre os maiores, o melhor: 
Um finório que tantos adulavam 
Pois em Coimbra esplêndido doutor 
E viajado a países que sonhavam 
D'aquela sociedade a fina flor… 
Sabiam que aquele era um intocável, 
Muito embora o seu crime detestável…

Sabiam que ele tinha esposa e filha. 
Mas, sobretudo, o fiel depositário 
Das grandes esperanças da família… 
Entrementes, o sangue hereditário 
Lavava aquele sangue peralvilha 
Da moça cujo mal involuntário 
Foi ser bela demais para viver 
Cerca ao primo que a quis como mulher. 
 
Chegando ao promontório finalmente 
Encontram junto ao abismo Mansueto… 
Parecia mais parvo que demente, 
Vindo do funeral, todo de preto. 
Vendo que não virava ele de frente 
Vão lhe tacando pedras mais graveto 
Até que o celerado lhes encara, 
Mostrando o animal que se tornara.

- "' Maldito seja!"' -- grita o antigo amigo 
Mansueto, assoberbado, por fim diz: 
-- 'Que fazes aqui, cão!? Que tens comigo?' 
-- "Vimos te ver morrer, grande infeliz! 
O amplo oceano te sirva de jazigo!…"--
Mansueto, porém -- 'O que que eu fiz!?… --
E buscando razão sem saber onde, 
Inopinadamente ele responde: 
 
-- 'Sabei-me tão-somente um amador 
Que amou a sua bela mais que vida! 
Se viestes me matar, é um favor 
Que fazeis a esta besta combalida… 
Todavia, o que fiz foi por amor 
Que ela me desdenhou, desfalecida. 
-- "Vinde! Temos punhais para um duelo… 
Eis que a morte escutou o vosso apelo!"

- 'Já faz horas eu duelo com a morte, 
À beira d'este abismo tão profundo! 
Não lamento, afinal, a minha sorte 
Se por ganhar o amor perdi o mundo. 
Eu tive a minha bela por consorte 
'Inda que n'um enlace moribundo: 
Entregue totalmente a meus abraços 
Me afagava, arfante, nos seus braços'…

'Que é o gozo senão quase morrer
Que após, desalentado, se revive?
Mais forte a segurei em seu prazer
A ponto que em seus olhos eu estive!
Sim, eu estive dentro de seu ser
E ali, a graça mais profunda tive:
Eu pude ver amor nos olhos d'ela!
Tão bela era na morte a minha bela…'
 
'Ela implorava: "Mata-me d'amor!" 
E então, enamorado, a fiz morrer.' 
-- "Celerado! Implorava de pavor, 
Sabendo com certeza perecer… 
-- '"Quão sem limites vive este senhor
Que a vida d'uma bela fez perder?… 
Mansueto… Talvez, manso pelo nome, 
Mas um monstro voraz em sua fome…!"

Dito isso, ouviu-se um grito lancinante 
E um corpo a despencar sobre o mar frio. 
O povo os encontrou n'aquele instante 
Ao ver o cabo extremo mais sombrio 
E foram testemunhas, no flagrante, 
Do salto do fidalgo no vazio 
E assim pereceu sem outro tanto 
Mansueto, o Senhor de Monte-Santo.

Betim - 01 04 2020


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