D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

Data 07/04/2020 23:17:06 | Tópico: Contos

António e Luísa
E
Os gatos da rua parda


Miado numero dois
“But the night was young and so were we dancing”



António

E no limiar desta noite estava António, com um pé na soleira e uma mão no ferrolho, que a dúvida ainda lhe sussurrava e a hesitação oferecia-se languidamente. António rejeitou a dúvida e permitindo, por segurança, que a hesitação o acompanhasse, entrou.

Cigarro nos lábios acabado de acender - refúgio seguro para as palavras que não querem ser ditas- e olhos fixos em nada para não se denunciar.

Duma tasca ambulante colheu uma cerveja para lhe aquecer o ânimo e lhe compor o disfarce. Só faltava descobrir o quarto onde queria entrar.

Olhou a noite à procura do sinal. Um grande gato preto fixava-o, impassível. António mirou-o e sentiu aquele olhar trespassá-lo e varrer o seu interior. O gato moveu-se e miou-lhe para o seguir. António especou-se, atónito, e logo o gato lhe rosnou e, virando-lhe costas, entrou numa ruela.

António sentiu as suas pernas mexerem-se e seguiu pela ruela. Ao virar um esquina fumosa, um Escobar falsificado perguntou-lhe se queria produto mas nem precisou responder, que o dito cujo logo percebeu que António ansiava outra oferta. Da cerveja que quase lhe caiu da mão pelo susto que tremeu, António bebeu mais um trago para serenar as pernas e continuou noite adentro.

Luísa

Às vezes a vida é um lugar severo, sombrio, sujo e solitário, como o é o pedaço de necessidade onde agora se encontra Luísa. Ela perscruta as esquinas da rua da oferta em busca da sorte que uma qualquer procura se lhe venha a oferecer. A sua oferta é um bem maior e, para bem dos seus pecados, ainda ninguém apareceu ao seu canto.

Luísa sabia que caminhava sobre o limbo de um abismo peçonhento do qual não conhecia o fundo, mas tinha consciência de que o veneno que dele exalava podia ser fatal, embriagando-a de tal forma que, sem que desse por isso, lhe iria corromper a alma tornando-a num carbúnculo sem brilho. Mas a recompensa valia o risco, pois a imagem do que amamos é como a nossa sombra, segue-nos por toda a parte. Aconchegou-se no seu fino casaco e mirando os três gatos que lhe faziam companhia, que mais pareciam sentinelas duma noite trágica, continuou a espera.

António

Depois da terceira cervejola, António conheceu a transfiguração. Sentia-se grande. Maior. Conquistador mor de todas as conquistas, que o seu peito aberto e inflamado de brio ébrio faria frente a todas as adversidades que lhe quisessem trazer infortúnio. Até o seu passo rígido e calculado, que marcava passo, era agora um passo de bailarino, ágil e solto e leve, que a hesitação se cansou dele e ficou à conversa com a indecisão num tira-teimas irresoluto, a ver quem incutia mais dúvida a quem nada sabe.

António já não tinha dúvidas, esta seria a noite da sua libertação. Nunca mais a humilhação se iria apoderar do corpo. Como da vez que veio em olhos de mulher, causada pela inacção do seu corpo na noite em que se deitaram a amar. A humilhação de ver estampada naqueles olhos a desilusão e a rejeição levou-o a esconder-se de si. António queria amar, mas a sua própria desilusão fez com que nunca mais se aventurasse a amar para não se expor a padecer.

Não, esta noite não.

E cada vez mais convicto do sucesso porvindouro foi à sua procura, que a excitação se espreguiçou pelo corpo todo e se levantou entre as pernas.


Luísa

Luísa já dava a noite como perdida, que ninguém aparecia à esquina do seu canto. Debateu-se tão ferozmente com o seu ser, acabando por vencer uma contenda que ambos perderam, e agora que sujeitou o seu corpo a ser personagem principal num filme negro labiríntico, mais parece que não passa de um mero e insignificante figurante. Sujeitou-se a sofrer pelo seu corpo e ninguém entra em cena. Mas Luísa não sabe que o seu íntimo não desistiu de ganhar o jogo.

E a jogada triunfante está a chegar, em passo de bailarino.



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