D'outras Noites: António e Luísa e os gatos da rua parda

Data 23/04/2020 21:11:05 | Tópico: Contos

António e Luísa
E
Os gatos da rua parda



Miado número cinco


“Because the night belongs to lovers, because the night belongs to us.”

Patti & Bruce





Como em tudo, o que é primeiro é sempre decisivo. O gesto de iniciar qualquer coisa é comum a todos os seres, seja homem ou gato, e uma vez posto em movimento jamais tudo será como dantes. Para o bem ou para o mal. Mesmo que ao fim do primeiro passo dado se volte atrás no tempo, não sendo já o mesmo tempo, uma coisa permanecerá pendurada num segundo: a omnipresente dúvida. Será que.

António deu o primeiro passo do resto do seu caminho.

Nada obstaculava António. No entanto parou ao perceber a angústia naquele miado, logo após a nota falhada do seu amigo acordeonista. Olhou os treze gatos na sua tribuna, aos quais se juntaram as três sentinelas de Luísa e teve a certeza que nenhum deles miara. Dezasseis pares de olhos em dezasseis felinas cabeças estáticas fixavam um só ponto.

Luísa.

De repente, tudo estava diferente.
António percebeu-o pela risada pútrida que se projectou pelo ar, tornando-o mais bafiento do que já era. Experimentou uma sensação de náusea quando o ar lhe chegou aos pulmões, pela esterqueira em que se tornaram os sentimentos daquelas carcaças ósseas forradas a derme.

Vislumbrou um esgar de dor e repelência no rosto de Luísa.
A carcaça-homem que lhe agarrava o pulso com brutalidade, dizia-lhe que aquele canto não lhe pertencia, que se quisesse ser puta que o fosse noutro lado. Ou então que lhe pagasse a sombra. A segunda risada, fétida, esbateu no rosto dela que se debateu para se soltar, mas foi agarrada pelos cabelos e jogada no chão.

Luísa deixou-se ficar estendida com todo o peso da vergonha a pressionar-lhe a alma.

A terceira risada, que nem chegou a sê-lo, estampou-se na parede juntamente com dois dentes e o espirro de sangue que saiu do nariz da carcaça-homem pelo primeiro murro de António. O segundo deixou o proxeneta estatelado no chão. Rapidamente debruçou-se sobre Luísa e virou-a para si. Quando os olhos de ambos se encontraram António experimentou um arrepiar de corpo. Percebeu imediatamente que a razão da sua existência teve a loucura necessária para o trazer ali esta noite. Que força era aquela que lhe renascia no âmago do ser e lhe acalentava o dia de amanhã. Sentiu uma vontade enorme de aconchegar aquela mulher e protege-la de todo o mal.

Dezasseis gatos soltaram dezasseis rugidos.

António sentiu movimento atrás de si, e o perigo também.
Levantou Luísa e rapidamente se afastaram dali. O proxeneta e seu séquito de putas-putas reprimiram a vontade de vingança nas garras de dezasseis gatos assanhados comandados por Albano Malhado.

O Mi bemol voltaria a soar.






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