Sem título(42)

Data 02/02/2007 20:48:36 | Tópico: Poemas

Dissolvo-me em cada renascimento

afirmo a ideia da luz e da obscuridade,

sei-me na relevância dos opostos,

caminho livre em trópicos asfixiantes como faço

sereno meu repouso em bosque verdejante,

faço da prova do vinho e do vinagre a sabedoria de

sabores sagrados, a suprema elevação dos sentidos,

ou o estertor quase mortal

da repulsa pelos acres viveres e sabores

inférteis.

Quero plantar a rosa no impossível e rochoso solo,

quero a sabedoria do mistério de todas as vinhas,

do pão amassado nas mãos de searas de mulheres ao

vento,

da casa livre sem tecto nem janelas e de porta

sempre franqueada.




Tomo da terra o barro informe, reproduzo a figura

do ente imaginado,

experimento a música por dentro da forma criada.

Poderia até saber cantar qualquer bela canção – a

minha voz é dissonante com ela

própria, a minha voz não ecoa para além do meu

próprio espaço íntimo –

sinto as mãos como o falsete do gesto

nem voz nem mãos são coisas reais!

O acordar de mim é um qualquer lugar de

inacessíveis frutas maduras. Perco-me entre

pomares por florescer, troco Verões e Invernos,

sento-me no fresco do Outono como se fora uma

invernia Primavera,

na hora do fruto maduro erro a trajectória do

desejo,

encontro-me em outra estação qualquer, resta-me da

colheita aromas tardios.




O arco imaginário no horizonte ou a espiral em que

me movo, são apenas ficções dum olhar alucinado,

eu brilho-me nos olhos sem saber que faço o pleno

do sol, ou sou o reflexo da mulher que se revela

por dentro dos meus olhos,

ou seja apenas a lua no dia com noites demoradas.

O fantasma de mim existe no meu próprio espanto,

na minha surpresa contínua,

na inusitada derrota do mar face à onda

da mulher presa no macho impotente,

da flor depois do fruto e de todo o livre

arbítrio,

de todas as vontades contra a terra queimada

do Homem Deus pelos Deuses impotentes

no homem vulgar

da mulher abandonada na amargura da pedra erodida.

Porque todas as praias

são feitas de mulheres por viver

porque todos os mares

são lágrimas do meu choro de mulher.

Eu tenho a mulher por dentro de mim,

no meu colo de afectos

eu sou fatalmente o peito aberto

como se fora o homem feito na mulher amada.




Agora tudo é mais claro quando fecho os olhos,

Digo agora, como o tempo medido de casualidades,

como tempo de outrora

ou tempo de futuros próximos.

De olhos cerrados o relógio de sol

tine como carrilhões

conto o tempo em cada átomo de mim

potencio equações de sons e imagens intemporais.

As saudades dos tempos de inocências várias,

do saber as horas nos sinos da igreja

de saber a mulher feliz no ramo de laranjeira

de querer saber as causas das coisas,

de descobrir o fogo no centro da terra

ou quedar-me apenas no abraçar da terra fértil

como quem fecunda a fêmea no auge do cio.




Interrogo-me em todas as certezas

de ciências titubeantes,

as verdades fazem-se em bolas de sabão

como o vento faz e se desfaz

em tempestades marítimas -as gaivotas são a minha

bússola sem norte -

rejo-me por sóis e marés ,

confundo-me por entre o vento

com a lua e a terra nos dentes, experimento a

devinação no arriscado nocturno navegar.

E já nada mais quero

que querer apenas o elementar da vida,

presenteio-me no simples deleite da areia molhada,

basta-me o sol e o mar

e toda a ignorância do mundo

basto-me em contemplações de paisagens fugidias.


Dionísio Dinis






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